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Não deixe de ler o Conto: "O Turra Mussolé", publicado no dia 7 de Setembro de 2008, o qual, ao cabo de 34 anos da chamada "Revolução dos Cravos" sofreu CENSURA por parte do Ministério da Defesa Nacional, levando-me a deixar de escrever no Jornal da APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas de Stresse de Guerra.


"MENINA DOS OLHOS TRISTES" CANTADO POR ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA

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terça-feira, 15 de setembro de 2009

OS CRIMES DE GUERRA SÃO IMPRESCRITÍVEIS

O JUÍZ PORTUGUÊS MAIS INTERNACIONAL DE SEMPRE NASCEU EM VISEU
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AVISO: O autor deste blogue alerta para o facto de esta publicação não dever ser visualizada por pessoas sensíveis, em virtude da crueza das palavras e das imagens (reais).
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"PARA DIGNIFICAR A MEMÓRIA E O CARÁCTER DOS EX-COMBATENTES HÁ QUE JULGAR OS ASSASSINOS!!! PORQUE NEM TODOS FORAM IGUAIS".
(do blogue: altoseixo: assassinos entre nós)
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Aviões militares NORATLAS utilizados na Guerra Colonial


OS MASSACRES, A UTILIZAÇÃO DE NAPALM E A GUERRA QUÍMICA TAMBÉM FORAM DENUNCIADOS NO PROGRAMA DE JOAQUIM FURTADO:
"A GUERRA"

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Avioneta DORNIER (DO) e Helicóptero Alouette, meios aéreos utilizados na Guerra Colonial
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Entrevista publicada no matutino português CORREIO DA MANHÃ em 16 de Agosto de 2009 e no blogue Barões da Sé de Viseu
(imagens do blogue supramencionado e do Google)
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Almiro Simões Rodrigues nasceu em Boaldeia, Viseu, há 59 anos. É licenciado em Direito e em Psicologia. Em Portugal ocupou vários cargos no Ministério Público, tendo chegado a procurador-geral-adjunto. Esteve no TPI e em várias missões de observação para a ONU. Fala seis línguas.
Voltou da Bósnia para gozar a aposentação em Portugal. Mas um convite para integrar o Tribunal Constitucional do Kosovo trocou-lhe as voltas. O juiz português mais internacional de sempre conta-nos a sua experiência.
Esteve no Tribunal Penal Internacional (TPI) para a ex-Jugoslávia, em missões da ONU na Costa do Marfim, foi candidato à presidência do TPI, juiz na Câmara de Crimes de Guerra de Sarajevo, e agora tomou posse como juiz do Tribunal Constitucional do Kosovo. É reconhecido internacionalmente.
Sente-se reconhecido em Portugal?
Tenho a ideia de que o meu trabalho não é reconhecido em Portugal. Sobretudo, não me sinto reconhecido no sentido de que os valores por que luto não são divulgados e não são tidos em consideração. Porque em alguns sectores sei que o meu trabalho é reconhecido, mas não é muito conhecido. Se calhar é culpa minha. No entanto, penso que não me cabe a mim criar essas situações; cabe-me apenas estar disponível. Na minha concepção de magistrado não cabe tomar um papel activo no sentido de fazer a divulgação deste trabalho.
O Governo acompanhou-o?
A minha candidatura para o TPI para a ex-Jugoslávia e para o TPI foi apoiada pelo Governo. De facto, os candidatos concorrem à eleição individualmente mas são propostos pelo Governo. Nesta fase sim; depois, praticamente se esqueceu, não houve um acompanhamento, a mesma coisa aconteceu noutras circunstâncias.
Quando foi investido no Kosovo não esteve nenhuma representação diplomática portuguesa.
Isso é verdade, não houve representação absolutamente nenhuma. Mas também é verdade que a minha ida para o Kosovo é pessoal, não envolve o Governo português.
Mas não deixa de ser um elemento da justiça portuguesa. Não se sente magoado?
Não me sinto magoado porque de alguma forma já estou habituado a funcionar no estrangeiro sem grande apoio das entidades oficiais ou grande visibilidade. Sou apresentado como português pela imprensa estrangeira mas não me causa problema pessoalmente. Sinto algum incómodo só na medida em que penso que os valores que estão presentes neste tipo de trabalho poderiam e deveriam merecer mais atenção, não só das entidades oficiais como dos próprios media. De facto, os crimes de genocídio, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade, a violação massiva dos direitos humanos deveria ser objecto de mais atenção. Posso dizer que até hoje não recebi uma carta de reconhecimento de qualquer entidade oficial. No entanto, não estou nada magoado por causa disso, porque não estou à espera sequer. Nunca trabalhei na minha vida para o reconhecimento. Trabalho porque acredito no que estou a fazer, gosto de o fazer e sei que posso ser útil. Estas são as minhas motivações fundamentais.
A ONU criou a Câmara de Crimes de Guerra de Sarajevo mediante uma proposta sua. Sente que lá fora reconhecem melhor o seu trabalho?
Não tenho dúvida nenhuma. Posso dizer, até com alguma imodéstia, que, em termos internacionais, não há ninguém com a minha experiência e conhecimento, porque não há nenhum outro juiz que tenha estado no TPI, que tenha trabalhado ao nível da jurisdição nacional e que tenha trabalhado em clara e estreita ligação com a jurisdição internacional. Só eu é que praticamente a experimentei. As pessoas reconhecem que a minha experiência e o meu conhecimento foram decisivos não só para o avanço do TPI para a ex – Jugoslávia e até o TPI, como sobretudo para a Câmara dos Crimes de Guerra. Para além disso, ninguém teve a experiência de campo e de terreno que eu tive. Internacionalmente este conhecimento e esta experiência são claramente reconhecidos e é por isso que recebo convites de todas as partes do mundo não só para conferências e formação mas também para certas acções.
Como é que surgiu o convite para o Tribunal Constitucional do Kosovo?
Já tinha regressado a Lisboa para gozar a minha aposentação mas alguém me disse que eu era necessário no Kosovo. Este tribunal é composto por nove juízes: seis são nacionais e três são internacionais. E assim fiz, avancei para este tribunal, que visa implementar uma proposta elaborada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para resolver o estatuto do Kosovo como Estado independente.
A independência do Kosovo é o objectivo do tribunal?
É objecto do Tribunal Constitucional do Kosovo a independência e o funcionamento regular das instituições que estão estabelecidas na constituição, designadamente a garantia dos direitos e liberdades fundamentais do cidadão, seja ele minoritário ou não. Mas, de alguma forma, tem que ver com isso porque se o estado do Kosovo funcionar segundo as regras internacionais, segundo os parâmetros de um estado civilizado e de direito, é óbvio que o reconhecimento acaba por ser mais fácil por parte dos países que ainda não reconheceram. Em termos de direito internacional o costume e o facto consumado são por vezes fonte de direito. E, portanto, desde que haja uma grande maioria dos estados a reconhecer, mesmo que essa independência tenha sido declarada sem base legal, ela tornar-se-á legal pela força de haver de facto reconhecimento.
Mas era ilegal?
Do meu ponto de vista, a declaração de independência é ilegal face às regras da ONU e às regras do direito internacional. Mas, como disse o costume é uma fonte de direito internacional, a prática é também de alguma forma um factor de mudança da própria lei internacional, que tem uma dinâmica um pouco diferente dos sistemas jurídicos nacionais. Por outro lado, o direito internacional, como existe hoje, não tem mais nada a ver com o direito internacional clássico, que nós estudámos nas faculdades de direito, assente nos conceitos de soberania, cidadania e fronteira. Estes pilares estão completamente ultrapassados. Basta dizer que cidadania, face às decisões do TPI, não tem mais a ver com o passaporte mas com o sentimento de pertença a um grupo nacional. Face à globalização e à fácil circulação das pessoas, temos que evoluir para um conceito de soberania em que há, não só obrigações de outros estados, mas também os direitos que os estados têm reciprocamente. E, por outro lado, a noção de fronteira não tem mais nada que ver com as barreiras aduaneiras, com o controle. O que é fronteira hoje face aos problemas de Chernobil, de tráfico de seres humanos ou de droga?
Como viu o compasso de espera feito por Portugal para o reconhecimento do Kosovo?
Não tenho uma opinião formada sobre isso. A ideia que tenho é que Portugal tinha feito um compasso de espera aguardando o parecer do Tribunal Internacional de Justiça, mas de repente houve uma declaração de reconhecimento por parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Seja como for, o facto está consumado, e tenho a impressão de que Portugal fazia bem em ter uma representação diplomática em Pristina [a capital].
E é irreversível?
Do meu ponto de vista o processo de independência é irreversível. A própria Rússia tem a sua representação diplomática em Pristina. Como tal, penso que Portugal fazia bem em acompanhar a carruagem. E o estar presente significa que pode influir. Mesmo havendo algum desacordo em relação a algumas coisas, Portugal pode dar alternativas no processo de construção dum novo Estado.
Quanto tempo espera ficar no Kosovo?
O meu mandato para já são três anos sujeito a extensão.
Entre 1997 e 2001 esteve no TPI para a ex-Jugoslávia. Julgou várias pessoas acusadas de genocídio, de perseguições religiosas e de extermínio. Qual foi o caso mais complicado que teve nas mãos e que mais o tenha impressionado?
Foram julgados vários sérvios, croatas, e até muçulmanos. Eu, por exemplo, julguei croatas – o general Blaskic, o Aleksovski – e sérvios. Mas o caso mais impressivo e que mais me obrigou a reflectir foi exactamente o caso de genocídio em Srebrenica [na Bósnia-Herzegovina].
O que viu chocou-o?
Vi muitas imagens, muitos vídeos, mas o que me chocou mais foi, sobretudo, o que ouvi. Chocou-me profundamente e colocou-me questões muito complicadas, para as quais tentei obter resposta na psicologia, na economia, na sociologia, inclusivamente na psicanálise.
Encontrou as respostas?
Não encontrei, o que tenho é provisório. Os relatos que ouvi, de pessoas que escaparam do pelotão de execução, à beira da vala comum, e chegaram ao tribunal para contar a história, são arrepiantes e não deixam de nos interpelar com essa questão que é extremamente difícil de responder: como é que seres humanos fazem isto a outros seres humanos? Esta é a grande questão. A minha resposta é que quem não está preparado para morrer está preparado para matar. Mas há outra coisa que está muito presente na revisão da minha resposta. Acho que as pessoas ainda não estão suficientemente maduras, quer em termos colectivos, quer individuais, para tomarem as suas próprias decisões.
É muito fácil, de facto, passarmos para a animalidade?
Eu acho que é fácil passarmos para a animalidade no sentido de rebanho, quer dizer, de seguir alguém sem sentido crítico, de se tomar uma decisão autónoma. Muitas vezes digo a quem reza que devia incluir nas suas orações este pequeno parâmetro: ‘E livrai-nos dos maus líderes’...
Alguma vez se sentiu mais fragilizado por ouvir o que ouviu?
Por vezes tive de fazer pausas porque sentia a voz embargada dos intérpretes que, sendo originários da ex-Jugoslávia, viveram e conheciam os acontecimentos em causa. E tive a necessidade de, na altura, organizar actividades desportivas em conjunto com a minha equipa de juízes e assistentes jurídicos, num parque, aonde íamos uma vez por semana, para nos mantermos a um nível capaz de funcionar. Passávamos cinco horas por dia a ouvir relatos, e aquilo era inacreditável, inimaginável, e obviamente que nos tocava muito. É verdade também que a minha formação em Psicologia e a experiência de trabalho com crianças abandonadas e maltratadas me deram a possibilidade de ser capaz de fechar a porta e de fazer a distinção entre aquilo que é o profissional e o que é o pessoal.
Conseguiu ser assim tão estanque?
Consigo fazer um distanciamento pessoal em relação ao objecto do julgamento. É possível darmo-nos conta de que o problema está lá, que existe e que está a bater à porta. Mas não o deixo entrar, para não me invadir e tocar, sob pena de ficar impróprio e incapaz de o resolver. Isto treina-se, eu digo que é possível. Durante este processo de genocídio e outros, como o do campo de concentração, todos eles davam razões para fazer perder o sono e não dormir descansado. Posso dizer que em todo este tempo tive apenas um único pesadelo.
Relativo a algum relato mais duro?
Não sei se pode fazer essa distinção porque todos os relatos eram duros, horríveis mesmo. Uma pessoa com oitenta e tal anos disse na audiência: “Sinto-me como uma árvore seca no meio de uma floresta vazia.” Tinha perdido mulher, filhos, netos, todos os parentes. Estava completamente isolado na vida e tinha levado 25 dias a fugir na floresta porque escapou do momento e local de execução. As metralhadoras disparavam e por vezes uma bala não acertava. Mas havia o efeito-dominó, as pessoas estavam alinhadas e as que estavam atrás caíam sobre as que estavam à frente. E estas sentiam o sangue quente a escorrer pelas costas abaixo e estavam vivas. Os soldados perguntavam: “Alguém está ferido?” Os que respondiam eram abatidos imediatamente. Os que não respondiam enfrentaram uma questão muito mais dura. Ao ouvirem o barulho das retroescavadoras que iam enterrar os cadáveres na vala comum, tiveram de fazer a opção entre serem enterradas vivas ou tentar escapar. Muitos tentaram escapar e foram abatidos. Outros conseguiram escapar e chegar ao tribunal para contar toda esta história. É evidente que ninguém é intocável a este relato. Isto interpela-nos enormemente.
Como é que é possível que situações destas ainda aconteçam? Temos o caso, por exemplo, do Darfur.
A mudança de atitude que preconizo em termos individuais tem de alcançar também as instâncias e as organizações internacionais. O que verifico da minha experiência é que a ONU é uma estrutura burocrática que demora muito tempo a reagir e quando reage é tarde. Todos sabemos que o genocídio do Ruanda foi possível porque a comunidade internacional demorou a reagir. O genocídio de Srebrenica existiu porque a comunidade internacional nunca acreditou que fosse possível. Srebrenica era uma zona protegida das Nações Unidas. Mais, as comunicações que foram feitas por quem lá estava a tomar conta da ONU só à quarta vez é que chegaram à sede em Nova Iorque. Isso significa que alguma coisa tem que mudar, a todos os níveis. Mais, o que por vezes verifico no campo é que Organizações Não Governamentais (ONG) estabelecem mecanismos de competição entre elas e não mecanismos de cooperação. E a dignidade da pessoa humana não pode depender da burocracia da ONU ou das competições das ONG.
Em julgamento qual foi a reacção dos réus perante a acusação?
Com o andamento do processo estas pessoas começam a dar conta de que podem ser culpadas, isto é, começam a dar conta que entraram na tal dinâmica de grupo. O grande problema é que eles são extraídos da dinâmica de grupo para serem julgados individualmente. No início esta é uma realidade completamente diferente para eles. Mas gradualmente vão-se dando conta de que são culpados. O que é interessante é verificar que este confronto acontece entre o início do processo e o momento da leitura da sentença.
Há uma mudança?
No momento da leitura da sentença, as pessoas parecem aceitar o que compreenderam ao longo do processo: que de facto cometeram crimes, que de facto o seu comportamento foi censurável, e aceitam. Eu recordo perfeitamente, quer o general Blaskic, quer o general Krstic, este um dos responsáveis pelo genocídio de Srebrenica, quer os comandantes dos campos de concentração dos casos que eu tive, no fim aceitaram e com uma dignidade incrível que a mim próprio surpreendeu.
Vive nos Balcãs, cruza-se com as pessoas na rua. Considera possível um novo conflito na região?
Gostava de dizer que não mas tenho alguns receios. E os meus receios vêm do facto de sentir que as diferenças étnicas não estão completamente ultrapassadas.
Acredita na detenção de Mladic?
Durante algum tempo não acreditei que fosse possível deter Radovan Karadzic e neste momento mantenho a mesma atitude em relação a Mladic. A grande questão são as relações entre a diplomacia internacional e justiça penal internacional. A diplomacia criou a justiça penal internacional, de alguma forma, para resolver um problema que ela não conseguia resolver e para calar as consciências da comunidade internacional. A diplomacia nunca acreditou que o TPI funcionasse. Só que houve uns pára-quedistas que caíram lá e que de facto levaram aquilo a sério e puseram aquilo a funcionar. A partir desse momento foi impossível recuar. A justiça penal internacional tornou-se extremamente incómoda para a diplomacia internacional. Esta, a determinada altura viu-se ultrapassada por uma criança completamente irreverente e autónoma que não seguia as orientações da diplomacia. E neste momento há ainda essa relação de tensão. Mas acredito que é possível. Agora depende da atitude e dos movimentos da diplomacia internacional.
Acredita que a justiça que foi feita pode compensar o drama humano que existiu?
A resposta é, claramente, não, mas é muito mais do que não haver justiça. O que tínhamos antes era uma situação de total impunidade. Os líderes mundiais, os chefes militares, faziam o que lhes apetecia e não eram chamados à responsabilidade. Creio que nem o próprio Milosevic acreditou que alguma vez fosse possível ir a tribunal. Acredito que a justiça é decisiva porque o ouvi da boca das vitimas. Imensa gente disse-me: “eu sofri imenso para chegar aqui, eu reservei esta história para ser contada aqui, porque é aqui, é na justiça que este problema tem que ser resolvido”. Portanto as pessoas acreditam efectivamente em termos internacionais que a justiça é decisiva.
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Os crimes relacionados com direitos humanos prescrevem?
Os crimes de guerra, os crimes de genocídio e os crimes contra a Humanidade são imprescritíveis. Mesmo os responsáveis políticos não têm consciência de que crimes cometidos há 30, 40 e mais anos podem ainda hoje ser julgados. Ou seja, do ponto de vista prático, crimes que aconteceram na Guerra Colonial podem ser sujeitos a julgamento hoje. Eu sei como, do ponto de vista processual. Se é possível julgá-los, digo ‘sim’, claramente. De outro ponto de vista já não respondo.
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Há responsáveis militares e políticos portugueses que ainda podem vir a ser julgados?
Do ponto de vista jurídico, a resposta é, claramente, sim. Isto é, os crimes são imprescritíveis.
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Pensa que isso deveria ser feito?
Prefiro não me pronunciar. Sou muito a favor dos processos de transição, pois visam resolver as consequências de um conflito. A justiça é apenas uma parte desse processo. Portanto, não me compete a mim apreciar do ponto de vista político e da oportunidade. Juridicamente, é possível, e se fosse encarregado de o fazer encontraria uma solução.
Mas quem faria os julgamentos?
É possível os tribunais portugueses, angolanos ou moçambicanos julgarem. É possível a criação de um tribunal ad-hoc. Mas isto implica, obviamente, uma decisão política, uma solução do ponto de vista processual, para estabelecer e dizer qual é o tribunal competente. Agora, qualquer procurador pode começar uma investigação e pode levar o caso a tribunal.
Se lhe encomendassem esse trabalho fá-lo-ia?
Fá-lo-ia porque seria minha obrigação. Como jurista com algum conhecimento e experiência neste domínio sei como fazê-lo. Mas ninguém me pediu até hoje e também não me ofereço.
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Isso poderia levantar um grande reboliço na sociedade portuguesa.
Penso que sim. Mas também acho uma outra coisa: os reboliços por vezes trazem esclarecimentos que são úteis ao desenvolvimento mais sereno e mais calmo. Não estou a dizer com isto que o reboliço tem que existir.
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Portanto há aqui uma questão que ainda pode vir a ser pegada.
Há uma questão que não é questão, porque as pessoas nunca tiveram consciência de que os crimes são imprescritíveis.
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Porque decidiu sair, o País era demasiado pequeno para si?
Havia coisas que eu gostava fazer neste pais e que senti que não podia fazer e por isso pensei que podia fazer fora.
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Que coisas?
Por exemplo, ao nível da reorganização da justiça, ao nível da formação dos magistrados, ao nível de criar mecanismos de proximidade com o cidadão, ao nível de melhorar a comunicação com o público, com as partes. Havia muita coisa que gostaria de fazer e que tive oportunidade de fazer lá fora.
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Fala-se de um descrédito cada vez maior da justiça portuguesa. Preocupa-o isto?
Quando observo a justiça de um ponto de vista exterior, o meu primeiro sentimento é de tristeza porque vejo que há coisas que são simples de fazer e que não são feitas. Há reformas que deveriam ser feitas e não são, mas, sobretudo, vejo que as reformas a fazer não podem ser feitas contra os cidadãos, mas a favor e com os cidadãos. E há um princípio que tenho presente e que é: a mudança tem que ser preparada, não pode ser imposta. Acho que há muito para melhorar sobretudo do ponto de vista de credibilizar a justiça. Em todo o caso, penso que o descrédito está num ponto que é recuperável, sobretudo com uma melhor atitude e comportamento dos diferentes actores que intervêm na justiça. Estes devem manter uma ligação especial com o público. É necessário que tudo isto seja feito em nome da transparência, não pode haver justiça oculta.
Isto é algo que se passa apenas em Portugal ou há comparação a nível internacional?
Eu acho que há comparação a nível europeu. Tenho impressão que a justiça tem alguma dificuldade em se adaptar aos movimentos e mudanças sociais aceleradas.
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Tendo como pano de fundo o processo Casa Pia, como é possível que seja feita justiça ainda?
Eu não quero mencionar nenhum caso em concreto. Há duas ou três coisas que eu gostava que fossem introduzidas ao nível do sistema português. Uma, e que eu não sei como traduzir em português, poderá ser algo como conferências de preparação e acompanhamento do julgamento. E outra seria a ‘guilty plea’: um processo para quem se declare culpado e outro para quem se declare não culpado. Ou até um processo que entrasse um pouco pela via da mediação. A mediação é vista hoje numa perspectiva de aceleração da justiça, em termos de dar à justiça os casos pesados e os outros poderem entrar numa via de mediação. Se ficarem resolvidos esse nível está resolvido. Se não forem resolvidos, estão pelo menos instruídos para serem julgados sem necessitarem de mais nenhum tipo de preparação. A conferência de preparação do julgamento em casos de grande complexidade provou que é possível definir com exactidão as matérias de direito e as matérias de facto. A partir do momento em que definimos com as partes este núcleo duro é possível quantificar e trazer a prova, discutir se são cinco testemunhas ou duas apenas, discutir se os documentos são todos necessários ou não. Porque na selecção dos documentos, segundo este sistema que experimentei, só são de considerar os documentos que, primeiro, são relevantes e, segundo, são autênticos. Não se discute o valor probatório porque esse só é verificado no final. O que acontece é que, por vezes, entram documentos no processo que aumentam o volume e a complexidade, que obrigam as pessoas a ler e a verificar que não é importante quando à partida isso não devia ter entrado. É possível a partir daqui estabilizar a prova que vai ser produzida em audiência, o que significa que é possível calendarizar o processo, isto é, estabelecer a data de início e a data do fim. Mais, é possível dizer a cada uma das partes quantos dias é que tem. Mais ainda, estes casos complicados não podem funcionar só com um juiz ou com um procurador, tem que haver uma equipa. Para esta equipa, é a minha terceira proposta, deviam entrar e ser criados os assessores jurídicos. O juiz faz todo um trabalho burocrático e todo um trabalho de investigação ao qual devia ser poupado. Ele devia ficar reservado para o trabalho jurisdicional. A mesma coisa com o procurador. Estes assessores, que podiam ser recém-licenciados, seriam uma base de recrutamento fantástica para a formação. Em vez de recrutar mais juízes porque não recrutar mais assessores? Nos quatro anos de mandato do TPI trabalhei e concluí cinco processos, e enormes. Mas isto só foi possível porque tive uma assistente jurídica, um jurista de câmara e tinha uma secretária.
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A independência dos juízes existe realmente?
É algo que pode chocar muita gente, se disser que da minha observação em geral não são independentes. Eu explico. A independência do juiz tem duas vertentes para ser uma independência a sério: a primeira é objectiva e a segunda é subjectiva. A primeira tem que ver com a pessoa que é independente mesmo, em si é independente. Mas é necessário que ela pareça ser independente, isto é, ninguém é independente se não for representado pelo público como tal. E, quando vemos que há juízes que, pelo público são associados a partidos políticos, a clubes de futebol ou a outro tipo de organizações, por mais que as pessoas sejam independentes, e até acredito que sejam do ponto de vista de si próprios, nunca mais serão independentes pois nunca mais serão percebidos como tal. Eu vou mais longe, por vezes as pessoas parecem independentes mas não são independentes. Diz-se que, para o juiz ser independente, tem de decidir segundo a lei e a sua consciência. Decidir segundo a lei é um parâmetro técnico. Decidir segundo a sua consciência é decidir livre de quaisquer pressões do passado, incluindo o passado e história pessoal, e ainda livre de quaisquer projecções sobre as consequências futuras. Ou seja, o juiz tem que ser capaz de se isolar no agora, que é o nível máximo de consciência. Quantos juízes serão capazes de o fazer? De qualquer forma, ser e parecer independente são condições sine qua non de independência.
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Fez o último ano do curso de Direito em Coimbra. Porquê?
Durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso), por causa do MRPP, tive que ir para Coimbra porque fui considerado traidor da classe operária em Lisboa. Em Coimbra fui aclamado como herói da classe operária.
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Explique-me lá isso melhor.
Sem querer entrar em detalhes, era trabalhador-estudante. Fui professor do ciclo preparatório, do liceu e fui contabilista, ao mesmo tempo que tirava o curso de Direito. Quando se discutia proletariado ia aos arames porque as pessoas não faziam a mínima ideia do que era o proletariado. Cheguei a fazer a experiência de ir trabalhar numa fábrica de cortiça no Seixal porque na altura andava muito metido nas discussões sociais. Determinadas pessoas apresentavam-se em público a discutir proletariado quando tinham a mesada do papá e tinham todo o apoio. Eu não concordava. Fui mal interpretado, declarado traidor da classe operária e proibido de entrar nas instalações da Faculdade.
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Tendo em conta tudo o que já viu, e julgou casos terríveis, algum momento perdeu a fé na Humanidade?
Tive dúvidas, porque muitas vezes fiquei chocado e baralhado. Mas não perdi a fé.


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