Este conto é dedicado a uma colega da blogosfera, pessoa que, não conhecendo pessoalmente, já me merece a maior estima e admiração: a Susana B. (blogue: Palavras que me tocam).
Foi o meu segundo trabalho literário censurado após a "Revolução dos Cravos", desta vez não a lápis azul (prática da polícia política PIDE-DGS) mas a caneta de feltro amarelo fluorescente.
O "TURRA MUSSOLÉ"
Mussolé era um nome temido tanto pelas tropas portuguesas como pela população nativa que, obrigatoriamente, lhe dava abrigo. Havia pertencido a um grupo de combate integrado no nosso exército como GE (Grupos Especiais), porque, não combatendo por idealismo, o seu lugar era junto daqueles que lhe proporcionavam mais regalias. Integrava, dado o seu prestígio junto das populações, um grupo de guerrilheiros, havendo-lhe sido atribuído um cargo de chefia. O comandante supremo do seu destacamento nómada naquela zona do leste de Angola era um português, ex-alferes miliciano e com ele movimentavam-se dois ou três cubanos e um chinês. Paradoxalmente, ou talvez não - aquela guerra também se sustentava assim - o senhor alferes, pertencente a uma família abastada, havia-se passado para o outro lado e, pasmem-se os mais incrédulos, recebia e emitia a sua correspondência para a Metrópole através da PIDE-DGS !?...
Certo dia assisti a um recrutamento e selecção desses GE's. Foi colocada uma mesa rectangular ao ar livre junto à tenda do Comando, ficando sentado ao centro o alferes-médico, ladeado por um enfermeiro e pelo cabo escriturário. Os nativos aguardavam ansiosos, de pé, em fila indiana e iam sendo submetidos a um interrogatório e inspecção médica sumários. Daquele colectivo quem decidia quanto à aptidão ou não era o médico. Chegada a vez do interrogatório a um negro de aspecto robusto e convencido, e mesmo antes de preenchidos os quesitos pelo cabo escriturário, o alferes-médico olhou-o muito fixamente, estranhando o facto dele usar uns óculos de armação dourada tipo Ray-Ban com lentes de vidro translúcidas mas visivelmente sem graduação. O médico, já experimentado com situações análogas, conteve o sorriso e, já prevendo a resposta, perguntou-lhe de forma inquisitória:
- O teu nome? Quem é que receitou esses óculos ao meu amigo? Essas lentes são graduadas?
O negro sorriu e respondeu timidamente:
- Chamô-me Zé, sinhor dotori. Os óculis são p' a dar catagoria!
A resposta provocou uma risada por parte daqueles que assistiam à selecção. À semelhança do que acontecia com Mussolé, também neste negro estava arreigada a convicção de que serem militares ou guerrilheiros, ostentarem uns óculos, possuírem uma bicicleta e um rádio transistorizado eram sinais exteriores de riqueza e de promoção social, tornando-os, assim, alvo da preferência de muitas mulheres e prestigiados junto das outras pessoas.
Um dia, Mussolé foi denunciado por um marido traído, informando os militares da presença do perigoso terrorista na sua cabana, "comendo mulher e comendo a comida". Foi imediatamente emboscado e feito prisioneiro juntamente com outro camarada de deserção. Foram amarrados com cordas à volta dos pulsos e das pernas e arrastados para um cubículo contíguo à enfermaria do aquartelamento. Alí aguardariam a chegada do senhor inspector da PIDE, o qual se encontrava no gozo dumas curtas férias em Luanda. Era a ele que competia interrogar, torturar, mandar matar, enfim, decidir da sorte daqueles dois guerrilheiros terroristas. Sabia-se, contudo, que o mais certo seria a libertação, dada a ligação existente entre eles e o tal grupo misto.
Não era necessário ser-se muito inteligente para se perceber que qualquer polícia, mesmo a tenebrosa, omnipotente e omnipresente polícia política, obtinha os seus frutos ao nível da investigação, a troco de algumas facilidades concedidas aos seus informadores...
O cabo enfermeiro sabia-o perfeitamente. Mas tinha "um pó desgraçado" aos terroristas e custava-lhe aceitar que tal acontecesse. Era conhecido pelo seu sadismo, pelas suas práticas cirúrgicas a sangue-frio realizadas de forma artesanal mesmo aos seus camaradas quando feridos. Tinha no seu currículo um vasto rol de atrocidades cometidas ao inimigo. E o inimigo, no seu ignorante entendimento, eram todos aqueles de raça negra, os quais considerava como animais selvagens, sem alma, independentemente do sexo ou idade.
Durante uma operação em que detectaram um aglomerado populacional, os próprios camaradas ficaram chocados com a sua crueldade, e eu ainda guardo uma fotografia do cadáver duma menina com aproximadamente dez anos de idade que, prostrada de joelhos, lhe implorava, chorando:
- Shindel (branco) não mata! Shindel não mata!
O cabo Miranda, de pé, com a G-3 apontada àquela criança indefesa e suplicando por misericórdia, arregalou os seus olhos verdes de felino enraivecido, esboçou na sua boca imunda um sorriso do tamanho dum cano de esgoto, e gozou à brava com aquele orgasmo pedófilo, ejaculando balas de 7,62 milímetros naquele corpinho virgem e desprotegido.
Numa outra operação em que foram dizimadas todas as criaturas encontradas, sugeriu ao comandante do pelotão (coitado, era um banana e temia-o) que preservasse uma negra alta e com um rosto e um corpo lindos, pois tinha um plano em mente que decerto iria ser do contentamento geral. Eram, salvo erro, catorze homens cansados, mal alimentados e suados, mas também perturbados. Contudo, restavam-lhes ainda forças para misturarem a sujidade mental à promiscuidade do acto que ninguém hesitou praticar. Aquela mulher negra e bela ali ficou deitada, nua, de barriga para o ar, com as pernas bem abertas e flectidas. Apenas lhe restava esperar. Fechou os olhos e voltou a cabeça para o lado. Duvido que tenha sentido a penetração dos treze monstros saltitantes. O décimo quarto e último foi o cabo enfermeiro, o qual iria desferir o golpe de misericórdia, libertando aquela bela fêmea negra do sofrimento causado pela bárbara violação colectiva.
Com a mente tão ranhosa quanto o seu membro viril, atirou-se para cima dela e "carinhosamente" manteve inerte a sua faca de mato sustentando-a com o punho contra o seu peito enquanto a ponta afiada se comprimia entre os enormes e bem machucados seios viscosos da vítima. Tombou arfando sobre ela, ejaculou a imundície contida nos seus testículos e deliciou-se enquanto se foi esfregando no sangue quente que ia jorrando e escorrendo entre os dois corpos.
No dia seguinte ao do aprisionamento de Mussolé e do seu companheiro tivemos conhecimento de que o inspector Brotas estaria de regresso. Durante o arrastamento dos prisioneiros até ao cubículo, um deles havia espetado um pedaço de madeira nas costas e foi pedido ao cabo Miranda que o tratasse. Foi para ele um prazer efectuar tal operação. Com o auxílio da faca de mato, sem qualquer anestésico, retirou-lhe o objecto estranho, provocando-lhe uma hemorragia. Aplicou-lhe uma compressa embebida em urina e um trapo bem apertado à volta do tronco. Nessa noite, o cabo Miranda, em conluio com outro soldado racista, arquitectou um maquiavélico estratagema para livrarem definitivamente da dor o Mussolé e o seu companheiro. E preservarem, sobretudo, os terroristas da proximidade com o malvado inspector da PIDE, que estava de regresso. O tempo urgia. Deixaram a porta do cubículo ligeiramente aberta, fingindo esquecimento, enquanto aguardaram impacientes o desenrolar dos acontecimentos. Tal como haviam previsto, os prisioneiros, ao darem conta da imprudente distracção dos carcereiros, abriram a porta lenta e cautelosamente, espreitaram para o exterior e intentaram a fuga. Não estava ninguém por perto. Era a hora de os oficiais e sargentos estarem a jogar e a beber, o mesmo acontecendo com os restantes militares. A fuga apresentava-se fácil. Saíram vagarosamente na direcção da sanzala. As rajadas inopinadas assustaram-nos. Todos os militares acorreram ao local, abandonando o jogo e as bebidas em cima das mesas. Cá fora, também o jogo do gato e do rato havia terminado. Obviamente, com a exterminação dos últimos em consequência da emboscada montada pelos caçadores furtivos.
Nota: Os nomes relatados neste texto são fictícios.
Certo dia, na Rua Augusta, em Lisboa, deparei com o ex-cabo enfermeiro, acompanhado da
presumível esposa e ladeados por duas lindas crianças louras. Ele reconheceu-me mas eu afastei-me para o outro lado da rua, ignorando-o.