Comovo-me sempre que assisto, através da televisão, à despedida daqueles rapazes que partem para integrarem forças militares internacionais em missão de paz num qualquer ponto do globo em guerra. Contudo, constato que as suas comissões de serviço são extremamente curtas e bem remuneradas. Além disso, possuem sofisticado equipamento electrónico, o que lhes permite falar e ver, à distância, os seus entes mais queridos, os seus amigos... E tornou-se numa moda o acompanhamento por parte de psicólogos (!!!)
No meu tempo a duração das comissões de serviço nas ex-colónias era, no mínimo, de dois longos e penosos anos. Correspondência só uma vez por semana, com notícias já ultrapassadas e por vezes mentirosas, a fim de evitarem ainda mais sofrimento...
O texto que abaixo transcrevo foi gentilmente publicado pela Sra Dra Laurinda Alves, na altura directora da Revista XIS-ideias para mudar (suplemento do Correio da Manhã).
...a caminho sabia-se lá do quê !
21 de Dezembro (faltam apenas três dias para o Natal)
17 horas:
Já a bordo do paquete Príncipe Perfeito e agarrado fortemente com a mão esquerda ao varão daquela imensa varanda navegante ia agitando no ar, com a mão direita, um lenço branco até me faltarem as forças nos membros e os olhos se encharcarem, acabando por deixar de ver aqueles que me eram mais queridos e lá ficaram, naquele cais de incertezas, apoiados uns nos outros, num sofrimento para o qual nunca haverá letras que consigam descrever...
22 horas:
Após a rápida refeição - trajando já à civil os cerca de oitenta militares que comigo embarcaram - a generalidade agrupou-se junto ao balcão do bar e uns beberam cerveja pelo gargalo da garrafa, depois de terem, com gesto premeditadamente rude, empurrado os copos com as costas da mão, outros despejaram raivosamente no esófago uísque com ou sem gelo, não importava, o que se pretendia era sentir rapidamente o efeito anestésico do acto... Até eu, que nunca bebia, acabei por me inebriar com alguns copos de uísque (lembro-me tão bem que se pagava apenas nove escudos e era do bom !). Depois, as alterações ao comportamento normalmente associadas a quem bebe demais surpreenderam-me: cada um se isolou a seu modo, apenas algumas lágrimas a escorrerem por entre as mãos que ocultavam as caras da dor. Foi nesse momento que saí, apressado, pensando estupidamente que podia voltar atrás, mas não... Transpor aquela porta levou-me apenas à parte exterior do navio, e dali avistei a proa que se mantinha num incessante baloiçar enquanto rasgava as águas a caminho sabia-se lá do quê !
Depois, um olhar desinteressado por aquele espectáculo a que assistia pela primeira vez:: a abóbada celeste completamente cravejada de estrelas, o reconhecer de que afinal a Terra sempre é como uma laranja, a julgar por aquele mar ali à volta, constantemente tão redondo...
Aquele permanente balançar; aquele ruído novo e estranho: a máquina, o mar e o vento misturavam-se - na primeira e inesquecível noite a bordo - com a música ambiente audível por toda a embarcação. Foi integralmente passada a 5ª. Sinfonia de Beethoven, logo seguida de um fado, provocando uma tal reacção psicológica a que nem o efeito do uísque havia de conter o choro: era, como por ironia, o fado que a minha saudosa avó Maria do Céu, a muito querida tia Margarida e a mais-que-tudo minha mãe cantavam baixinho enquanto me embalavam para adormecer. Da voz de Amália Rodrigues, envolvida no éter pelos gemidos de guitarras e violas ouvia-se: "Ai Mouraria / Da velha Rua da Palma / Onde eu um dia / Deixei presa a minha alma..."
I
Hoje, remexendo os trapos velhos,
achei no meu baú, empoeirados,
papéis de mel e fel: aerogramas.
Fiquei a tarde toda de joelhos
sonhando com aqueles tempos passados:
corações, corpos, sanzalas em chamas.
II
Navio lançando grito estridente
solidário com pai / mãe / namorada
/ mulher / filhos, todos os mais queridos;
um esvoaçar de lenços tão fremente
a barra que começa a ser passada
espuma de mar tragando tempos idos...
III
E cai do céu a noite, o mar é breu
e entra-me Beethoven pela alma
e oiço a voz de Amália, que saudade !
Já dorme no convés aquele que bebeu
com ar sereno, aparente calma
não querendo despertar p' ra realidade.
IV
Chegados a África, terra querida,
que em nada contribuiu para o terror
lá imposto não se sabe bem por quem,
começa-se a sentir aquela ferida
que lateja, purga, infecta em tanta dor
e a Morte a embrulhar o Zé-Ninguém.
V
A notícia tomba abrupta lá do ar:
a namorada / mulher foi infiel
traíu-o com o melhor companheiro;
é choro, é raiva, vontade de matar
fugir do acampamento ou do quartel
e deixar-se morrer prisioneiro.
VI
Ainda pior sina tem aquele
que através da notícia semanal
fica em estado de choque também;
abre o correio, não crê que seja dele
e confirma o recorte do jornal:
um acidente matou-lhe filho e mãe !
VII
Malvados há-os em todos os lados
a ocasião a fazer o vilão.
Chacina poupa preta linda e bela
e o último daqueles soldados
sacia a sua fome apontando então
a faca entre o peito dele e dela.
VIII
Aquele calendário tão comprido
de oitocentos dias, talvez mais
riscado com punho forte, devagar
acaba finalmente preenchido
e os distúrbios na mente são tais
que deixou de haver pressa em regressar.
No meu tempo a duração das comissões de serviço nas ex-colónias era, no mínimo, de dois longos e penosos anos. Correspondência só uma vez por semana, com notícias já ultrapassadas e por vezes mentirosas, a fim de evitarem ainda mais sofrimento...
O texto que abaixo transcrevo foi gentilmente publicado pela Sra Dra Laurinda Alves, na altura directora da Revista XIS-ideias para mudar (suplemento do Correio da Manhã).
...a caminho sabia-se lá do quê !
21 de Dezembro (faltam apenas três dias para o Natal)
17 horas:
Já a bordo do paquete Príncipe Perfeito e agarrado fortemente com a mão esquerda ao varão daquela imensa varanda navegante ia agitando no ar, com a mão direita, um lenço branco até me faltarem as forças nos membros e os olhos se encharcarem, acabando por deixar de ver aqueles que me eram mais queridos e lá ficaram, naquele cais de incertezas, apoiados uns nos outros, num sofrimento para o qual nunca haverá letras que consigam descrever...
22 horas:
Após a rápida refeição - trajando já à civil os cerca de oitenta militares que comigo embarcaram - a generalidade agrupou-se junto ao balcão do bar e uns beberam cerveja pelo gargalo da garrafa, depois de terem, com gesto premeditadamente rude, empurrado os copos com as costas da mão, outros despejaram raivosamente no esófago uísque com ou sem gelo, não importava, o que se pretendia era sentir rapidamente o efeito anestésico do acto... Até eu, que nunca bebia, acabei por me inebriar com alguns copos de uísque (lembro-me tão bem que se pagava apenas nove escudos e era do bom !). Depois, as alterações ao comportamento normalmente associadas a quem bebe demais surpreenderam-me: cada um se isolou a seu modo, apenas algumas lágrimas a escorrerem por entre as mãos que ocultavam as caras da dor. Foi nesse momento que saí, apressado, pensando estupidamente que podia voltar atrás, mas não... Transpor aquela porta levou-me apenas à parte exterior do navio, e dali avistei a proa que se mantinha num incessante baloiçar enquanto rasgava as águas a caminho sabia-se lá do quê !
Depois, um olhar desinteressado por aquele espectáculo a que assistia pela primeira vez:: a abóbada celeste completamente cravejada de estrelas, o reconhecer de que afinal a Terra sempre é como uma laranja, a julgar por aquele mar ali à volta, constantemente tão redondo...
Aquele permanente balançar; aquele ruído novo e estranho: a máquina, o mar e o vento misturavam-se - na primeira e inesquecível noite a bordo - com a música ambiente audível por toda a embarcação. Foi integralmente passada a 5ª. Sinfonia de Beethoven, logo seguida de um fado, provocando uma tal reacção psicológica a que nem o efeito do uísque havia de conter o choro: era, como por ironia, o fado que a minha saudosa avó Maria do Céu, a muito querida tia Margarida e a mais-que-tudo minha mãe cantavam baixinho enquanto me embalavam para adormecer. Da voz de Amália Rodrigues, envolvida no éter pelos gemidos de guitarras e violas ouvia-se: "Ai Mouraria / Da velha Rua da Palma / Onde eu um dia / Deixei presa a minha alma..."
I
Hoje, remexendo os trapos velhos,
achei no meu baú, empoeirados,
papéis de mel e fel: aerogramas.
Fiquei a tarde toda de joelhos
sonhando com aqueles tempos passados:
corações, corpos, sanzalas em chamas.
II
Navio lançando grito estridente
solidário com pai / mãe / namorada
/ mulher / filhos, todos os mais queridos;
um esvoaçar de lenços tão fremente
a barra que começa a ser passada
espuma de mar tragando tempos idos...
III
E cai do céu a noite, o mar é breu
e entra-me Beethoven pela alma
e oiço a voz de Amália, que saudade !
Já dorme no convés aquele que bebeu
com ar sereno, aparente calma
não querendo despertar p' ra realidade.
IV
Chegados a África, terra querida,
que em nada contribuiu para o terror
lá imposto não se sabe bem por quem,
começa-se a sentir aquela ferida
que lateja, purga, infecta em tanta dor
e a Morte a embrulhar o Zé-Ninguém.
V
A notícia tomba abrupta lá do ar:
a namorada / mulher foi infiel
traíu-o com o melhor companheiro;
é choro, é raiva, vontade de matar
fugir do acampamento ou do quartel
e deixar-se morrer prisioneiro.
VI
Ainda pior sina tem aquele
que através da notícia semanal
fica em estado de choque também;
abre o correio, não crê que seja dele
e confirma o recorte do jornal:
um acidente matou-lhe filho e mãe !
VII
Malvados há-os em todos os lados
a ocasião a fazer o vilão.
Chacina poupa preta linda e bela
e o último daqueles soldados
sacia a sua fome apontando então
a faca entre o peito dele e dela.
VIII
Aquele calendário tão comprido
de oitocentos dias, talvez mais
riscado com punho forte, devagar
acaba finalmente preenchido
e os distúrbios na mente são tais
que deixou de haver pressa em regressar.
5 comentários:
Gosto muito da forma como escreve.
Muito obrigado Carmen
Pena é que as pessoas não venham a este espaço. Falta-me o marketing, não acha?
Gostaria de escrever um romance que, certamente, seria censurado. Desisti de escrever. Nunca gostei de cunhas e também não estou disposto a entrar no lobby gay. Sabe, apenas como mero exemplo, como é que o cozinheiro Goucha atingiu tanta notoriedade? Sabe quanto é que Media Capital lhe paga pelo programa diário na TVI?
É um escândalo!
Beijinho
António
Ainda não tinha lido este seu poema:
Quando a dor é assim tão grande não há vontade de regressar, mas o regresso quando acontece traz muito para dar.
Grande beijo, muito grande
Isabel
(Andei baralhada entre as Tentativas Poemáticas e as Tentativas PoemáticasII)
Oh Isabel
Não tem nada que baralhar. É sempre em frente, no próximo cruzamento vira...olhe, o melhor é chamar um táxi e pronto!
Beijinho
António
Nem sei porque parei aqui.
A sua guerra foi em Angola e a minha na Guiné.
Desperou-me uma curiosidade muito grande juntamente com o desejo de saber porque fomos nós os mártires desta guerra sem nome nem rosto.
Depois o seu estilo leve e ao mesmo tempo misterioso fez-me seguir em frente e acabar por conhecer o sofrimento alheio.
Não consigo entender.
Não quero perceber nem tão pouco continuar neste sofrimento.
Sofreram os pretos e sofremos nós.
Afinal a quem aproveitaram todas as vidas destruidas e humilhadas...?
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