Estava a tentar negociar a aquisição dum imóvel situado na Rua do Ouro, em Lisboa, quando um súbito terramoto sacudiu e deslocou abrupta e violentamente dos seus lugares : hotéis, prédios e vivendas, naquele cartão desdobrável sobre o qual jogávamos o Monopólio. Também nós estremecemos exterior e interiormente.
Tentei correr e contrariar a prisão involuntária dos membros inferiores enquanto me dirigia na direcção do meu kimbo onde, dependurados num dos varões verticais do beliche se encontravam o cinturão com as cartucheiras e a arma automática G-3. Coloquei desajeitadamente o cinturão e posicionei o selector de tiro em “rajada”.
Das bandas do rio distinguia-se, no silêncio da noite, o som aterrador dos disparos de muitas armas automáticas num matraquear contínuo. À volta do aquartelamento existiam umas fossas às quais haviam dado o nome de “abrigos” e foi no primeiro que encontrei que para lá me deixei cair , esperando, de cócoras, o pior. O tiroteio persistia e ninguém sabia exactamente o que estava a acontecer. Do lado do rio encontrava-se a sanzala e o que me ocorreu de imediato foi que o inimigo houvesse iniciado a tentativa de penetração no acampamento atacando os GE’s que lá pernoitavam. Nunca tinha ouvido falar em qualquer plano estratégico de defesa em caso de ataque nocturno.
Os meus pais conheceram pessoalmente o bondoso Padre Cruz, que faleceu uns anos antes do meu nascimento. Tiveram o privilégio de manter com ele uma relação de amizade, confiança e admiração, as quais, após a sua morte, se viriam a transformar num culto. Habituei-me a ouvir falar dele e passei também a venerá-lo, por tudo aquilo que ele significava. A minha mãe, quando da minha mobilização, “encomendou-me” àquele Espírito Superior e sempre que eu me encontrava em perigo evocava-o, pedindo-lhe auxílio, não só para mim como também para os meus restantes camaradas.
Muito rapidamente passaram-me pelo pensamento os entes mais queridos e entreguei-me com muita tranquilidade ao meu protector celestial.
Afinal, face à desorganização e temor generalizados, apenas me restava aguardar um tiro, o rebentamento duma granada, ou mesmo ter de, pela primeira vez, enfrentar o inimigo numa luta desigual. Meras, absurdas e atabalhoadas suposições !
As armas foram-se gradualmente silenciando. Passados mais ou menos cinco minutos, ainda imóvel, os maxilares começaram a bater incontrolavelmente um contra o outro. As pernas tremiam. De repente, uma voz, na altura irreconhecível, tão forte quanto embargada fez-se ouvir por todo o aquartelamento : - A situação está controlada, malta ! 'Tá tudo bem, pessoal ! 'Tá tudo bem !...
Saímos então dos abrigos, juntando-nos à porta do Posto de Comando.
Um grupo de quinze GE’s, à revelia do comandante, havia decidido descer até à beira-rio para emboscar um casal de hipopótamos, os quais, há algum tempo, lhes tinham vindo a destruir a lavra de milho que eles ali haviam cultivado.
Ao nascer do sol uma Berliet rebocou um daqueles enormes animais até ao interior do aquartelamento. O outro havia conseguido escapar, embora ferido. Foi uma autêntica festança que me fez lembrar a matança do porco na Metrópole. Ainda hoje recordo o odor nauseabundo, espalhado no ar, quando procederam ao esquartejamento daquele enorme bicho e à sua repartição pelas famílias autóctones. O Daniel, um franzino e bem-humorado soldado nortenho, na altura em que constatávamos com estupefacção a desmesurada espessura da pele do animal perguntou-me se eu conhecia a melhor e mais eficaz forma de matar a tiro um hipopótamo : - 'Tás a ber, alfacinha, a largura que tem a pele do dito cujo ? P’ ra furar um bitelo destes a tiro é uma carga de trabalhos, carago ! Só nas bistas, pá, só nas bistas ! Sabias que o hipopótamo gosta muito de pastéis de nata ? Bai daí o maralhal bai-se até ele, debagarzínho, com uma trabessa cheia de pastéis numa mão e na outra leba a arma. O caçador estende a trabessa até ao nariz do animal, ele sente o cheiro da doçaria e, bai daí, passa a ter mais bistas do que barriga ! Então, aponta-se a canhota às bistas do bicho e pronto...
A carne foi, no meio de grande confusão e gritaria no dialecto luxaze, racionalmente distribuída por cada família e, durante semanas, todos os kimbos da sanzala a ostentavam, pousada no capim que constituía as suas coberturas. Devidamente salgada ali ficou a secar ao sol e totalmente coberta das teimosas moscas que esvoaçavam agitadas sobre cada pedaço. A pele, cortada às tiras, era amarrada na extremidade e à volta do capim que cobria o kimbo e era mantida esticada graças à pedra que lhe era atada na ponta para, quando seca, ser trabalhada pelos artesãos, sobretudo na confecção de chicotes.
No dia seguinte o almoço servido aos militares foi constituído de bife acompanhado com batatas fritas. Tal como outros camaradas, também eu receei que o bifalhão fosse de hipopótamo. Cortei o primeiro pedaço e tomei-lhe, cautelosamente, o gosto. Quanto à sua textura assemelhava-se a borracha ; quanto ao paladar era demasiadamente adocicado. O cozinheiro havia-nos assegurado que a carne era de vaca mas a nossa incredulidade tornou a refeição mais demorada. Havia-nos, realmente, sido pregada uma partida e o hipopótamo entrou, naquela refeição, na nossa cadeia alimentar.
.Tentei correr e contrariar a prisão involuntária dos membros inferiores enquanto me dirigia na direcção do meu kimbo onde, dependurados num dos varões verticais do beliche se encontravam o cinturão com as cartucheiras e a arma automática G-3. Coloquei desajeitadamente o cinturão e posicionei o selector de tiro em “rajada”.
Das bandas do rio distinguia-se, no silêncio da noite, o som aterrador dos disparos de muitas armas automáticas num matraquear contínuo. À volta do aquartelamento existiam umas fossas às quais haviam dado o nome de “abrigos” e foi no primeiro que encontrei que para lá me deixei cair , esperando, de cócoras, o pior. O tiroteio persistia e ninguém sabia exactamente o que estava a acontecer. Do lado do rio encontrava-se a sanzala e o que me ocorreu de imediato foi que o inimigo houvesse iniciado a tentativa de penetração no acampamento atacando os GE’s que lá pernoitavam. Nunca tinha ouvido falar em qualquer plano estratégico de defesa em caso de ataque nocturno.
Os meus pais conheceram pessoalmente o bondoso Padre Cruz, que faleceu uns anos antes do meu nascimento. Tiveram o privilégio de manter com ele uma relação de amizade, confiança e admiração, as quais, após a sua morte, se viriam a transformar num culto. Habituei-me a ouvir falar dele e passei também a venerá-lo, por tudo aquilo que ele significava. A minha mãe, quando da minha mobilização, “encomendou-me” àquele Espírito Superior e sempre que eu me encontrava em perigo evocava-o, pedindo-lhe auxílio, não só para mim como também para os meus restantes camaradas.
Muito rapidamente passaram-me pelo pensamento os entes mais queridos e entreguei-me com muita tranquilidade ao meu protector celestial.
Afinal, face à desorganização e temor generalizados, apenas me restava aguardar um tiro, o rebentamento duma granada, ou mesmo ter de, pela primeira vez, enfrentar o inimigo numa luta desigual. Meras, absurdas e atabalhoadas suposições !
As armas foram-se gradualmente silenciando. Passados mais ou menos cinco minutos, ainda imóvel, os maxilares começaram a bater incontrolavelmente um contra o outro. As pernas tremiam. De repente, uma voz, na altura irreconhecível, tão forte quanto embargada fez-se ouvir por todo o aquartelamento : - A situação está controlada, malta ! 'Tá tudo bem, pessoal ! 'Tá tudo bem !...
Saímos então dos abrigos, juntando-nos à porta do Posto de Comando.
Um grupo de quinze GE’s, à revelia do comandante, havia decidido descer até à beira-rio para emboscar um casal de hipopótamos, os quais, há algum tempo, lhes tinham vindo a destruir a lavra de milho que eles ali haviam cultivado.
Ao nascer do sol uma Berliet rebocou um daqueles enormes animais até ao interior do aquartelamento. O outro havia conseguido escapar, embora ferido. Foi uma autêntica festança que me fez lembrar a matança do porco na Metrópole. Ainda hoje recordo o odor nauseabundo, espalhado no ar, quando procederam ao esquartejamento daquele enorme bicho e à sua repartição pelas famílias autóctones. O Daniel, um franzino e bem-humorado soldado nortenho, na altura em que constatávamos com estupefacção a desmesurada espessura da pele do animal perguntou-me se eu conhecia a melhor e mais eficaz forma de matar a tiro um hipopótamo : - 'Tás a ber, alfacinha, a largura que tem a pele do dito cujo ? P’ ra furar um bitelo destes a tiro é uma carga de trabalhos, carago ! Só nas bistas, pá, só nas bistas ! Sabias que o hipopótamo gosta muito de pastéis de nata ? Bai daí o maralhal bai-se até ele, debagarzínho, com uma trabessa cheia de pastéis numa mão e na outra leba a arma. O caçador estende a trabessa até ao nariz do animal, ele sente o cheiro da doçaria e, bai daí, passa a ter mais bistas do que barriga ! Então, aponta-se a canhota às bistas do bicho e pronto...
A carne foi, no meio de grande confusão e gritaria no dialecto luxaze, racionalmente distribuída por cada família e, durante semanas, todos os kimbos da sanzala a ostentavam, pousada no capim que constituía as suas coberturas. Devidamente salgada ali ficou a secar ao sol e totalmente coberta das teimosas moscas que esvoaçavam agitadas sobre cada pedaço. A pele, cortada às tiras, era amarrada na extremidade e à volta do capim que cobria o kimbo e era mantida esticada graças à pedra que lhe era atada na ponta para, quando seca, ser trabalhada pelos artesãos, sobretudo na confecção de chicotes.
No dia seguinte o almoço servido aos militares foi constituído de bife acompanhado com batatas fritas. Tal como outros camaradas, também eu receei que o bifalhão fosse de hipopótamo. Cortei o primeiro pedaço e tomei-lhe, cautelosamente, o gosto. Quanto à sua textura assemelhava-se a borracha ; quanto ao paladar era demasiadamente adocicado. O cozinheiro havia-nos assegurado que a carne era de vaca mas a nossa incredulidade tornou a refeição mais demorada. Havia-nos, realmente, sido pregada uma partida e o hipopótamo entrou, naquela refeição, na nossa cadeia alimentar.
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