Foi, incontestavelmente, durante o longo período de duração da Guerra Colonial, o meio de comunicação que mais encheu as Estações de Correios, os porões dos aviões, os altos e espelhados edifícios do SPM (Serviço Postal Militar), as malas de cabedal e os braços dos carteiros, espalhando-se por cidades e pelas aldeias mais recônditas. O Aerograma foi escrito e lido à mesa do rico e do pobre. Passou por cadeias e hospitais. Aos civis era distribuído na cor azul e aos militares na cor amarela. O seu custo avulso era de $30 (três tostões). Correu mundo este papel fino e desdobrável portador de notícias, sentimentos, alegrias e tristezas. Para além das letras, muitas vezes esborratadas pelos salpicos inevitáveis das lágrimas descuidadas, neles eram inscritos e desenhados lindos poemas e figuras, as quais expressavam os mais diferentes estados de alma.
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Acabariam guardados em baús, gavetas ou malas, retendo sufocados, para a eternidade, memórias da verdadeira, da autêntica história vivida por toda uma população que sofreu na alma e na carne as dores intermináveis da guerra. Muitos deles escondiam por detrás das metáforas ou frases subentendidas coisas que se receava viessem a ser alvo da censura pidesca.
Quando sentia necessidade de transmitir a um amigo em Lisboa alguma mensagem de cariz mais arriscado, fazia-o, não através de aerograma, mas enviando-lhe uma carta com conteúdo normal e colocando-lhe um peso superior a vinte gramas, por forma a utilizar mais de um selo.
Por detrás dos selos a mensagem era escrita tipo telegrama ou como hoje se pratica com as abreviaturas utilizadas nos SMS dos telemóveis.
Os selos eram colados bem juntinhos um ao outro e a cola apenas lhes tocava no rebordo quadrangular ou rectangular (dependia do formato dos selos) por forma a que, ao serem arrancados, a mensagem, que havia sido escrita em letra minúscula e traço extremamente leve (para não se notar na face dos selos), chegasse às mãos do destinatário incólume. Era sabido que a PIDE, quando tinha desconfianças em relação a determinado indivíduo, violava-lhe a correspondência, fazendo-o também de forma aleatória a tantos outros.
Chamei-lhes : “...papéis de mel e fel, aerogramas...” porque veiculavam notícias alegres, mas também tristes. Recordo-me, por exemplo, daqueles camaradas que recebiam a notícia alegre do nascimento dum filho e que pagavam uma rodada de cerveja a toda a gente, mas a tristeza rapidamente se apoderava deles por saberem só virem a conhecer os seus filho(a)s muitos meses mais tarde, se o destino o permitisse.
Na “Torre do Tombo” de algumas casas portuguesas os Aerogramas permanecem desbotados e adormecidos. Por vezes, os saudosistas visitam-nos e ainda derramam sobre eles lágrimas frescas, quando lhes aflui à memória tempos de sofrimento indescritíveis.
Quem se lembra, ou já ouviu falar, hoje, do Aerograma ?
Os Aerogramas tinham o apoio do MNF (Movimento Nacional Feminino) e da TAP (transportadora aérea nacional). As “tias” do MNF eram, na generalidade, senhoras ligadas à UN (União Nacional), o partido único com assento na Assembleia Nacional (hoje Assembleia da República).
Quando o senhor general Costa Gomes tomou posse como Comandante-Chefe das Forças Armadas em Angola, teve conhecimento, entre muitos outros casos de abuso e corrupção, de que o tempo de espera para o regresso dos militares para a Metrópole, após terminada a sua já tão prolongada comissão de serviço, se arrastava por tempo indeterminado. A lista de espera para o tão desejado voo no Boeing da TAP, fretado pelas Forças Armadas, havia-se tornado num pesadelo para os militares.
Constou-se no interior da mata (este tipo de notícias é mais veloz que um caça da Força Aérea) que, certo dia, inopinadamente, o senhor general se deslocou ao Aeroporto de Luanda, querendo analisar as listas de passageiros. Estupefacto, deparou com uma situação, no mínimo inusitada e efectivamente abusiva. Dessas listas constavam os nomes das “tias”, das esposas de alguns comandantes, assim como gente do “jet-set” local. Deslocavam-se, “à borla”, ao “PUTO” (Metrópole) para fazerem as suas compras e tratarem as suas fartas e altas cabeleiras ou fazerem o “peeling” nos mais conceituados e caros salões de cabeleireiro ou institutos de beleza.
A partir daí, efectivamente, o tempo de espera para a deslocação de regresso dos militares alterou-se consideravelmente.
Por esta e outras atitudes que marcaram a presença daquele general, à porta da tenda compartilhada com os meus camaradas mais esclarecidos politicamente, o Carlos Barros colou a sua fotografia recortada do Jornal do Exèrcito.
A tomada de posse daquele general sem medo, embora prudente, gerou alguma polémica a nível político.
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Lembro-me que, curiosamente, em simultâneo chefiava o Agrupamento de Engenharia em Angola o senhor general Vasco Gonçalves. No leste de Angola, para os lados de Henrique de Carvalho, na província do Moxico, comandando uma Companhia de Engenharia na mata, comecei a conhecer e a respeitar um capitão, através dos relatos contidos na correspondência trocada com um furriel dessa Unidade, o Serra, amigo da adolescência. O capitão Pinto Soares era um oficial duma integridade e humanismo a toda a prova. Curiosamente, as três personalidades atrás descritas, no dia 25 de Abril de 1974 encontrei-as, através da televisão, na mesa do MFA (Movimento das Forças Armadas).
A ostentação da fotografia do senhor general Costa Gomes à porta da nossa tenda foi, de imediato, considerada como um acto de subtil insubordinação. Fomos aconselhados a retirá-la, com a ameaça de nos dispersarem por outras tendas.
A Revolução de Abril já se encontrava em gestação. Era imperioso que um grupo de homens (militares) honestos e receosos de Angola e Moçambique se tornarem Vietenames, actuarem. Na Guiné, já há muito vietenamizada, contava-se com o apoio do seu Comandante-Chefe : o senhor general Spínola.
A Revolução dos Cravos haveria de pôr um fim àqueles impressos de comunicação com sabor e odor a guerra : os Aerogramas.
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Acabariam guardados em baús, gavetas ou malas, retendo sufocados, para a eternidade, memórias da verdadeira, da autêntica história vivida por toda uma população que sofreu na alma e na carne as dores intermináveis da guerra. Muitos deles escondiam por detrás das metáforas ou frases subentendidas coisas que se receava viessem a ser alvo da censura pidesca.
Quando sentia necessidade de transmitir a um amigo em Lisboa alguma mensagem de cariz mais arriscado, fazia-o, não através de aerograma, mas enviando-lhe uma carta com conteúdo normal e colocando-lhe um peso superior a vinte gramas, por forma a utilizar mais de um selo.
Por detrás dos selos a mensagem era escrita tipo telegrama ou como hoje se pratica com as abreviaturas utilizadas nos SMS dos telemóveis.
Os selos eram colados bem juntinhos um ao outro e a cola apenas lhes tocava no rebordo quadrangular ou rectangular (dependia do formato dos selos) por forma a que, ao serem arrancados, a mensagem, que havia sido escrita em letra minúscula e traço extremamente leve (para não se notar na face dos selos), chegasse às mãos do destinatário incólume. Era sabido que a PIDE, quando tinha desconfianças em relação a determinado indivíduo, violava-lhe a correspondência, fazendo-o também de forma aleatória a tantos outros.
Chamei-lhes : “...papéis de mel e fel, aerogramas...” porque veiculavam notícias alegres, mas também tristes. Recordo-me, por exemplo, daqueles camaradas que recebiam a notícia alegre do nascimento dum filho e que pagavam uma rodada de cerveja a toda a gente, mas a tristeza rapidamente se apoderava deles por saberem só virem a conhecer os seus filho(a)s muitos meses mais tarde, se o destino o permitisse.
Na “Torre do Tombo” de algumas casas portuguesas os Aerogramas permanecem desbotados e adormecidos. Por vezes, os saudosistas visitam-nos e ainda derramam sobre eles lágrimas frescas, quando lhes aflui à memória tempos de sofrimento indescritíveis.
Quem se lembra, ou já ouviu falar, hoje, do Aerograma ?
Os Aerogramas tinham o apoio do MNF (Movimento Nacional Feminino) e da TAP (transportadora aérea nacional). As “tias” do MNF eram, na generalidade, senhoras ligadas à UN (União Nacional), o partido único com assento na Assembleia Nacional (hoje Assembleia da República).
Quando o senhor general Costa Gomes tomou posse como Comandante-Chefe das Forças Armadas em Angola, teve conhecimento, entre muitos outros casos de abuso e corrupção, de que o tempo de espera para o regresso dos militares para a Metrópole, após terminada a sua já tão prolongada comissão de serviço, se arrastava por tempo indeterminado. A lista de espera para o tão desejado voo no Boeing da TAP, fretado pelas Forças Armadas, havia-se tornado num pesadelo para os militares.
Constou-se no interior da mata (este tipo de notícias é mais veloz que um caça da Força Aérea) que, certo dia, inopinadamente, o senhor general se deslocou ao Aeroporto de Luanda, querendo analisar as listas de passageiros. Estupefacto, deparou com uma situação, no mínimo inusitada e efectivamente abusiva. Dessas listas constavam os nomes das “tias”, das esposas de alguns comandantes, assim como gente do “jet-set” local. Deslocavam-se, “à borla”, ao “PUTO” (Metrópole) para fazerem as suas compras e tratarem as suas fartas e altas cabeleiras ou fazerem o “peeling” nos mais conceituados e caros salões de cabeleireiro ou institutos de beleza.
A partir daí, efectivamente, o tempo de espera para a deslocação de regresso dos militares alterou-se consideravelmente.
Por esta e outras atitudes que marcaram a presença daquele general, à porta da tenda compartilhada com os meus camaradas mais esclarecidos politicamente, o Carlos Barros colou a sua fotografia recortada do Jornal do Exèrcito.
A tomada de posse daquele general sem medo, embora prudente, gerou alguma polémica a nível político.
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Lembro-me que, curiosamente, em simultâneo chefiava o Agrupamento de Engenharia em Angola o senhor general Vasco Gonçalves. No leste de Angola, para os lados de Henrique de Carvalho, na província do Moxico, comandando uma Companhia de Engenharia na mata, comecei a conhecer e a respeitar um capitão, através dos relatos contidos na correspondência trocada com um furriel dessa Unidade, o Serra, amigo da adolescência. O capitão Pinto Soares era um oficial duma integridade e humanismo a toda a prova. Curiosamente, as três personalidades atrás descritas, no dia 25 de Abril de 1974 encontrei-as, através da televisão, na mesa do MFA (Movimento das Forças Armadas).
A ostentação da fotografia do senhor general Costa Gomes à porta da nossa tenda foi, de imediato, considerada como um acto de subtil insubordinação. Fomos aconselhados a retirá-la, com a ameaça de nos dispersarem por outras tendas.
A Revolução de Abril já se encontrava em gestação. Era imperioso que um grupo de homens (militares) honestos e receosos de Angola e Moçambique se tornarem Vietenames, actuarem. Na Guiné, já há muito vietenamizada, contava-se com o apoio do seu Comandante-Chefe : o senhor general Spínola.
A Revolução dos Cravos haveria de pôr um fim àqueles impressos de comunicação com sabor e odor a guerra : os Aerogramas.
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A tão esperada avioneta DO (Dornier) que nos trazia os alimentos e a correspondênia à 4ª.feira
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