O “MEU PRIMEIRO”
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Em Luanda tomei lugar naquela viatura mista de cabina semi-avançada, com as suas duas tampas enormes em chapa de abertura lateral a albergarem o potente motor, a parte central servindo de mini-autocarro amontoando pessoas envoltas num odor intenso a catinga e a traseira aberta, com taipais, transformada em pequena camioneta e destinada ao carregamento das bagagens mais volumosas pertencentes aos passageiros e das encomendas para entrega nos agentes ao longo da viagem ou na Estação Terminal. Era este o veículo amorfo e pertencente à empresa transportadora Eva que me iria levar até Nova Lisboa. Além de mim, apenas três militares que regressavam à sua Unidade, ali para as bandas da Gabela, após umas curtas férias na lindíssima capital angolana, a fazerem aquela viagem, sendo este o meu primeiro convívio, durante dois dias consecutivos, com cidadãos negros, na maioria mulheres e crianças exalando o tal odor característico ao qual acabei por me habituar.
Depois, daquela pequenina, simpática e tranquila cidade de Nova Lisboa até ao Luso a viagem prosseguiu através dos Caminhos de Ferro, com paragem durante a noite, numa tentativa frustrada em dormir um sono já por demais adiado. Aquele comboio muito antigo com as suas carruagens de assentos em madeira destinava-se apenas ao transporte de civis e militares de poucos recursos, pois quem possuía dinheiro viajava de avião. Às cinco horas da madrugada o comboio reiniciou a sua marcha até atingir, quase ao final do dia, o já tão desejado destino. E foi ali, na cidade do Luso, capital da área geográfica que era e ficou conhecida como região do Leste, que comecei a sentir que havia chegado à zona de guerra. Apesar do cansaço a imensa curiosidade ainda me deu forças e sentei-me por alguns instantes à mesa duma esplanada, aproveitando para conversar e colher informações com outros militares enquanto bebi uma ou duas cervejas. Finalmente o sono reparador numa caserna onde me instalaram até ao dia seguinte. Nessa manhã partiu o MVL (designação correspondente a “movimento logístico”) muito usada para identificar uma caravana composta por viaturas militares anti-minas, por vezes meia dúzia outras vezes dezenas de camiões civis e na retaguarda mais algumas viaturas de protecção militar. Destino: Cangamba, aquartelamento situado nas chamadas terras-do-fim-do-mundo – uma região de clima comparável ao do nosso Minho - à distância de três dias e sempre obedecendo aos trilhos daquelas infindáveis picadas empoeiradas.
Chegados a Cangamba cada qual foi para seu lado. Eu encontrava-me tão cansado, triste e coberto daquele pó que me tapava todos os poros, que só me apetecia tomar uma bebida e dormir, embora não fizesse ainda a menor ideia do como seria a minha vida dali para a frente. Como sempre, fiz um esforço, pensei positivamente e pedi aos meus santinhos que me ajudassem. Por enquanto estava sozinho e perdido mas no dia seguinte decerto já conheceria os meus camaradas e, tal como os outros, também me habituaria...
Começava a escurecer. E eu ali parado sem já distinguir o peso daquela saca enorme às costas, as cartucheiras carregadas à cintura, apenas tendo consciência de haver pousado naquele chão de terra batida a coronha da célebre arma automática G-3 enquanto a segurava pelo cano, servindo-me dela como apoio.
Passaram por mim dois “velhinhos” (era sempre mais velhinho do que o outro quem tivesse nem que fosse apenas um dia a mais de comissão), e recebi duas palmadas nas costas, uma de cada um, o que levantou uma enorme poeirada, enquanto aquele que parecia estar mais “tocado” me saudou primeiro:
- Benbindo, oh maçarico ! (termo usado na tropa para designar um novato) - T’ ás feito ! Que mal é que fizeste para bires parar aqui ? Debias era bir-me a render p’ ra eu ir já p’ ró Puto, carago ! – gracejou o outro com acentuada pronúncia do norte.
Em Luanda tomei lugar naquela viatura mista de cabina semi-avançada, com as suas duas tampas enormes em chapa de abertura lateral a albergarem o potente motor, a parte central servindo de mini-autocarro amontoando pessoas envoltas num odor intenso a catinga e a traseira aberta, com taipais, transformada em pequena camioneta e destinada ao carregamento das bagagens mais volumosas pertencentes aos passageiros e das encomendas para entrega nos agentes ao longo da viagem ou na Estação Terminal. Era este o veículo amorfo e pertencente à empresa transportadora Eva que me iria levar até Nova Lisboa. Além de mim, apenas três militares que regressavam à sua Unidade, ali para as bandas da Gabela, após umas curtas férias na lindíssima capital angolana, a fazerem aquela viagem, sendo este o meu primeiro convívio, durante dois dias consecutivos, com cidadãos negros, na maioria mulheres e crianças exalando o tal odor característico ao qual acabei por me habituar.
Depois, daquela pequenina, simpática e tranquila cidade de Nova Lisboa até ao Luso a viagem prosseguiu através dos Caminhos de Ferro, com paragem durante a noite, numa tentativa frustrada em dormir um sono já por demais adiado. Aquele comboio muito antigo com as suas carruagens de assentos em madeira destinava-se apenas ao transporte de civis e militares de poucos recursos, pois quem possuía dinheiro viajava de avião. Às cinco horas da madrugada o comboio reiniciou a sua marcha até atingir, quase ao final do dia, o já tão desejado destino. E foi ali, na cidade do Luso, capital da área geográfica que era e ficou conhecida como região do Leste, que comecei a sentir que havia chegado à zona de guerra. Apesar do cansaço a imensa curiosidade ainda me deu forças e sentei-me por alguns instantes à mesa duma esplanada, aproveitando para conversar e colher informações com outros militares enquanto bebi uma ou duas cervejas. Finalmente o sono reparador numa caserna onde me instalaram até ao dia seguinte. Nessa manhã partiu o MVL (designação correspondente a “movimento logístico”) muito usada para identificar uma caravana composta por viaturas militares anti-minas, por vezes meia dúzia outras vezes dezenas de camiões civis e na retaguarda mais algumas viaturas de protecção militar. Destino: Cangamba, aquartelamento situado nas chamadas terras-do-fim-do-mundo – uma região de clima comparável ao do nosso Minho - à distância de três dias e sempre obedecendo aos trilhos daquelas infindáveis picadas empoeiradas.
Chegados a Cangamba cada qual foi para seu lado. Eu encontrava-me tão cansado, triste e coberto daquele pó que me tapava todos os poros, que só me apetecia tomar uma bebida e dormir, embora não fizesse ainda a menor ideia do como seria a minha vida dali para a frente. Como sempre, fiz um esforço, pensei positivamente e pedi aos meus santinhos que me ajudassem. Por enquanto estava sozinho e perdido mas no dia seguinte decerto já conheceria os meus camaradas e, tal como os outros, também me habituaria...
Começava a escurecer. E eu ali parado sem já distinguir o peso daquela saca enorme às costas, as cartucheiras carregadas à cintura, apenas tendo consciência de haver pousado naquele chão de terra batida a coronha da célebre arma automática G-3 enquanto a segurava pelo cano, servindo-me dela como apoio.
Passaram por mim dois “velhinhos” (era sempre mais velhinho do que o outro quem tivesse nem que fosse apenas um dia a mais de comissão), e recebi duas palmadas nas costas, uma de cada um, o que levantou uma enorme poeirada, enquanto aquele que parecia estar mais “tocado” me saudou primeiro:
- Benbindo, oh maçarico ! (termo usado na tropa para designar um novato) - T’ ás feito ! Que mal é que fizeste para bires parar aqui ? Debias era bir-me a render p’ ra eu ir já p’ ró Puto, carago ! – gracejou o outro com acentuada pronúncia do norte.
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- Oh bacanos ! Já agora digam-me, por favor, a quem é que este maçarico se deve apresentar ? - perguntei-lhes enquanto ia ajeitando a G-3, agarrando-a pela zona do carregador, encostada com força à perna direita e com o cano apontado para o chão.
Indicaram-me um barracão que ali se encontrava bem à nossa frente, dizendo-me que lá dentro ainda encontraria o “nosso primeiro”, ou seja : o responsável pela Secretaria do Batalhão, o primeiro sargento Tobias. Assim que obtive a informação dirigi-me à porta e lá estava ele sentado à secretária, com aspecto de “morcão”, o que efectivamente viria a confirmar ser mesmo. Antes de entrar, pedi licença, saudei-o o mais educadamente possível e disse-lhe que tinha chegado de Luanda para prestar serviço naquele Batalhão.
O sargento esforçou-se por assumir um ar austero, recostou-se na cadeira e muito secamente perguntou-me :
- Nunca te ensinaram a te apresentares como debe de ser ? Bai lá p’ ra fora e bolta mas apresenta-te como debe de ser !
A atitude do “morcão” não me surpreendeu minimamente, o que me irritou, isso sim, foi o facto de nos encontrarmos naquele sítio inóspito, marcial, o adiantado da hora e, sobretudo, a frieza e até a crueldade da recepção para com um indivíduo que apresentava sinais por demais evidentes de cansaço depois duma viagem atribulada de oito dias...
O sargento Tobias já tinha no currículo várias comissões no Ultramar, da Guiné até Timor, mas das que ele realmente gostava eram daquelas em zonas consideradas operacionais : essas “davam mais dinheiro”... E eram mais compensadoras monetariamente não tanto ao nível do ordenado mas sim em função da experiência, da “ratice”, enfim, sobretudo da falta de escrúpulos.
Daí aquela maldita guerra haver durado até eles se fartarem, não só os sargentos, entenda-se... O primeiro Tobias tinha a esposa a viver com ele ali no mato e os dois filhos andavam a estudar em Luanda e gozavam da companhia dos avós. Em Luanda ele já possuía duas vivendas. Em Lisboa era proprietário de um andar e lá na terra a casinha velha já se havia transformado em “maison”.
Estes alguns dos bens que ele próprio, quando já tinha cerveja até à goela, “declarava”.
A minha experiência pessoal aliada à curiosidade por estes temas levou-me a tomar conhecimento de inúmeros casos incríveis duma espécie de corrupção abominável dadas as circunstâncias em que era praticada e tendo em conta o tipo de pessoas que eram atingidas. Provavelmente que mais de metade dos efectivos militares de carreira, os chamados “Chicos”, quer fossem oficiais, sargentos ou mesmo cabos, tiraram partido daquela guerra prejudicando inclusivamente os seus pares, de carreira ou milicianos.
Também foram imensos os casos de corrupção praticados por milicianos – por exemplo aqueles com responsabilidades nas áreas da alimentação e dos combustíveis e lubrificantes. Uns, mais levianos, gastaram-no lá, outros guardaram-no para ser cambiado na Mutamba (baixa de Luanda) àqueles homens que traziam uma pasta ou carteira debaixo do braço e que funcionavam como uma Bolsa de Valores ambulante : se hoje um escudo valia um angolar e meio, amanhã já valia três – nunca consegui perceber, nem fiz questão sequer, como aquilo funcionava. Efectuada a transacção num qualquer cantinho daquela Praça, mais ou menos às escondidas, os angolares continuavam a circular na sua terra natal e os escudos acompanhavam os seus novos possuidores até à “peluda” (vida civil).
Durante o tempo em que cumpri serviço na Companhia do primeiro Tobias no Leste de Angola, num destacamento em Cangombe, jamais experimentei, assim como os restantes camaradas, o conforto dum lençol ou duma fronha de almofada. Pois durante cerca de seis meses, no nosso “pré” (ordenado) eram descontados valores que diziam respeito a lavagem de lençóis (?)
- Oh bacanos ! Já agora digam-me, por favor, a quem é que este maçarico se deve apresentar ? - perguntei-lhes enquanto ia ajeitando a G-3, agarrando-a pela zona do carregador, encostada com força à perna direita e com o cano apontado para o chão.
Indicaram-me um barracão que ali se encontrava bem à nossa frente, dizendo-me que lá dentro ainda encontraria o “nosso primeiro”, ou seja : o responsável pela Secretaria do Batalhão, o primeiro sargento Tobias. Assim que obtive a informação dirigi-me à porta e lá estava ele sentado à secretária, com aspecto de “morcão”, o que efectivamente viria a confirmar ser mesmo. Antes de entrar, pedi licença, saudei-o o mais educadamente possível e disse-lhe que tinha chegado de Luanda para prestar serviço naquele Batalhão.
O sargento esforçou-se por assumir um ar austero, recostou-se na cadeira e muito secamente perguntou-me :
- Nunca te ensinaram a te apresentares como debe de ser ? Bai lá p’ ra fora e bolta mas apresenta-te como debe de ser !
A atitude do “morcão” não me surpreendeu minimamente, o que me irritou, isso sim, foi o facto de nos encontrarmos naquele sítio inóspito, marcial, o adiantado da hora e, sobretudo, a frieza e até a crueldade da recepção para com um indivíduo que apresentava sinais por demais evidentes de cansaço depois duma viagem atribulada de oito dias...
O sargento Tobias já tinha no currículo várias comissões no Ultramar, da Guiné até Timor, mas das que ele realmente gostava eram daquelas em zonas consideradas operacionais : essas “davam mais dinheiro”... E eram mais compensadoras monetariamente não tanto ao nível do ordenado mas sim em função da experiência, da “ratice”, enfim, sobretudo da falta de escrúpulos.
Daí aquela maldita guerra haver durado até eles se fartarem, não só os sargentos, entenda-se... O primeiro Tobias tinha a esposa a viver com ele ali no mato e os dois filhos andavam a estudar em Luanda e gozavam da companhia dos avós. Em Luanda ele já possuía duas vivendas. Em Lisboa era proprietário de um andar e lá na terra a casinha velha já se havia transformado em “maison”.
Estes alguns dos bens que ele próprio, quando já tinha cerveja até à goela, “declarava”.
A minha experiência pessoal aliada à curiosidade por estes temas levou-me a tomar conhecimento de inúmeros casos incríveis duma espécie de corrupção abominável dadas as circunstâncias em que era praticada e tendo em conta o tipo de pessoas que eram atingidas. Provavelmente que mais de metade dos efectivos militares de carreira, os chamados “Chicos”, quer fossem oficiais, sargentos ou mesmo cabos, tiraram partido daquela guerra prejudicando inclusivamente os seus pares, de carreira ou milicianos.
Também foram imensos os casos de corrupção praticados por milicianos – por exemplo aqueles com responsabilidades nas áreas da alimentação e dos combustíveis e lubrificantes. Uns, mais levianos, gastaram-no lá, outros guardaram-no para ser cambiado na Mutamba (baixa de Luanda) àqueles homens que traziam uma pasta ou carteira debaixo do braço e que funcionavam como uma Bolsa de Valores ambulante : se hoje um escudo valia um angolar e meio, amanhã já valia três – nunca consegui perceber, nem fiz questão sequer, como aquilo funcionava. Efectuada a transacção num qualquer cantinho daquela Praça, mais ou menos às escondidas, os angolares continuavam a circular na sua terra natal e os escudos acompanhavam os seus novos possuidores até à “peluda” (vida civil).
Durante o tempo em que cumpri serviço na Companhia do primeiro Tobias no Leste de Angola, num destacamento em Cangombe, jamais experimentei, assim como os restantes camaradas, o conforto dum lençol ou duma fronha de almofada. Pois durante cerca de seis meses, no nosso “pré” (ordenado) eram descontados valores que diziam respeito a lavagem de lençóis (?)
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O cabo escriturário da Companhia era um genuíno e pachorrento alentejano de Serpa. Um óptimo rapaz cuja figura robusta contrastava com a finíssima educação e delicadeza no trato. Muito discreto, calhou-lhe em sorte ficar subordinado ao primeiro Tobias. Cumpria escrupulosamente com os seus deveres, mesmo sendo cúmplice do seu superior hierárquico, mas, nisso todos estariam de acordo, passar de escriturário a atirador seria uma insensatez. Contudo, avisava sempre aqueles em quem ele sabia poder confiar para as manipulações administrativas praticadas pelo sargento.
Quando nos eram concedidas férias, em função dos dias gozados fora da Unidade estipularam as autoridades governamentais que fossem também atribuídos subsídios em virtude de não estarmos a ser por ela alimentados. O cabo Serpa também acerca disso me avisou :
- Olha, alfacinha, quando ele te entregar a papelada para assinares repara que tens direito a um subsídio chamado de “desarranchamento”.
Mas acabou por acontecer comigo o que acontecia sempre com todos os outros. O sargento havia aprendido isso na escola da pilhagem ao longo de tanta comissão de serviço. Era a psicologia do medo ou a da sobejamente conhecida ânsia que os militares tinham em se livrarem por uns dias daquele malvado ambiente marcial.
Por curiosidade demorei um pouco a verificar todos aqueles papéis mas, acto contínuo, ele soltou um grito enquanto bateu com o punho na mesa fazendo “destroçar” aquela papelada até então ali tão bem “perfilada” :
- Estás a desconfiar ou quê ? Isso foi feito por mim, o primeiro da Secretaria, oubis-te ? Ou já não queres ir de férias ? Bá, assina aqui e aqui e aqui ! Isso mesmo ! Menino bonito ! E não te esqueças de passar na Enfermaria e pede ao nosso furriel ou ao nosso cabo p’ ra te darem uma bisnaga anti-benérea.
Os militares, quando lhes era oportuno procurarem companhia feminina, o que acontecia naturalmente durante as férias, tinham a obrigação de levarem da Enfermaria da Unidade uma pomada anti-venérea e inscreverem o seu nome e data num livro especialmente aberto para o efeito, pois se contraíssem qualquer tipo de doença ao nível de todo o aparelho urinário, mesmo que não tivessem feito uso da pomada ficavam ilibados de culpa, não lhes sendo movido processo disciplinar, ganhando o direito a ser-lhes ministrado o tratamento adequado. Era uma forma de prevenção de choque : intimidar, esclarecer, premiar ou castigar. Tinha aspectos positivos mas também uma face mais oculta, sinistra, muitíssimo trágica : a dos militares menos esclarecidos que contraíram infecções graves, as esconderam com medo porque não inscreveram o seu nome no livro da Enfermaria, ou apenas por vergonha, e que lá se suicidaram, pois muitos deles eram casados e mesmo os solteiros não aguentavam a ideia de regressarem com o pénis amputado.
O sargento Tobias conhecia alguns casos destes, daí o cuidado que tinha ao fazer tais avisos. Ao mesmo tempo que roubava num lado como contrapartida penitenciava-se com uma boa acção : a prevenção da blenorragia (vulgarmente conhecida como “esquentamento”).
Meses mais tarde, o Batalhão regressou ao “Puto” (Metrópole) e com ele o Primeiro Sargento Tobias, o qual não deve ter mamado mais nenhuma comissão em consequência do 25 de Abril.
Fui colocado numa Companhia de Engenharia comandada por um capitão ribatejano, homem bom, íntegro, profissional, hoje na situação de reserva com o posto de tenente-coronel, salvo-erro, e que ocupa o seu tempo em prol da comunidade como vereador na Câmara duma das vilas mais bonitas do Ribatejo, talvez do país, a qual se presume tenha servido de berço a Camões: Constância. O capitão Farinha da Costa foi um daqueles oficiais de carreira que deixou muita obra feita em terras de África. Nessa Companhia, passados tantos meses, após uma ligeira conversa com o sargento da secretaria, o duro mas justo “primeiro” Madail, vim a receber os valores, que a juntar a tantos outros, devem ter servido para o tal Tobias comprar o carrinho novo p’ ra mostrar lá na terra...
O cabo escriturário da Companhia era um genuíno e pachorrento alentejano de Serpa. Um óptimo rapaz cuja figura robusta contrastava com a finíssima educação e delicadeza no trato. Muito discreto, calhou-lhe em sorte ficar subordinado ao primeiro Tobias. Cumpria escrupulosamente com os seus deveres, mesmo sendo cúmplice do seu superior hierárquico, mas, nisso todos estariam de acordo, passar de escriturário a atirador seria uma insensatez. Contudo, avisava sempre aqueles em quem ele sabia poder confiar para as manipulações administrativas praticadas pelo sargento.
Quando nos eram concedidas férias, em função dos dias gozados fora da Unidade estipularam as autoridades governamentais que fossem também atribuídos subsídios em virtude de não estarmos a ser por ela alimentados. O cabo Serpa também acerca disso me avisou :
- Olha, alfacinha, quando ele te entregar a papelada para assinares repara que tens direito a um subsídio chamado de “desarranchamento”.
Mas acabou por acontecer comigo o que acontecia sempre com todos os outros. O sargento havia aprendido isso na escola da pilhagem ao longo de tanta comissão de serviço. Era a psicologia do medo ou a da sobejamente conhecida ânsia que os militares tinham em se livrarem por uns dias daquele malvado ambiente marcial.
Por curiosidade demorei um pouco a verificar todos aqueles papéis mas, acto contínuo, ele soltou um grito enquanto bateu com o punho na mesa fazendo “destroçar” aquela papelada até então ali tão bem “perfilada” :
- Estás a desconfiar ou quê ? Isso foi feito por mim, o primeiro da Secretaria, oubis-te ? Ou já não queres ir de férias ? Bá, assina aqui e aqui e aqui ! Isso mesmo ! Menino bonito ! E não te esqueças de passar na Enfermaria e pede ao nosso furriel ou ao nosso cabo p’ ra te darem uma bisnaga anti-benérea.
Os militares, quando lhes era oportuno procurarem companhia feminina, o que acontecia naturalmente durante as férias, tinham a obrigação de levarem da Enfermaria da Unidade uma pomada anti-venérea e inscreverem o seu nome e data num livro especialmente aberto para o efeito, pois se contraíssem qualquer tipo de doença ao nível de todo o aparelho urinário, mesmo que não tivessem feito uso da pomada ficavam ilibados de culpa, não lhes sendo movido processo disciplinar, ganhando o direito a ser-lhes ministrado o tratamento adequado. Era uma forma de prevenção de choque : intimidar, esclarecer, premiar ou castigar. Tinha aspectos positivos mas também uma face mais oculta, sinistra, muitíssimo trágica : a dos militares menos esclarecidos que contraíram infecções graves, as esconderam com medo porque não inscreveram o seu nome no livro da Enfermaria, ou apenas por vergonha, e que lá se suicidaram, pois muitos deles eram casados e mesmo os solteiros não aguentavam a ideia de regressarem com o pénis amputado.
O sargento Tobias conhecia alguns casos destes, daí o cuidado que tinha ao fazer tais avisos. Ao mesmo tempo que roubava num lado como contrapartida penitenciava-se com uma boa acção : a prevenção da blenorragia (vulgarmente conhecida como “esquentamento”).
Meses mais tarde, o Batalhão regressou ao “Puto” (Metrópole) e com ele o Primeiro Sargento Tobias, o qual não deve ter mamado mais nenhuma comissão em consequência do 25 de Abril.
Fui colocado numa Companhia de Engenharia comandada por um capitão ribatejano, homem bom, íntegro, profissional, hoje na situação de reserva com o posto de tenente-coronel, salvo-erro, e que ocupa o seu tempo em prol da comunidade como vereador na Câmara duma das vilas mais bonitas do Ribatejo, talvez do país, a qual se presume tenha servido de berço a Camões: Constância. O capitão Farinha da Costa foi um daqueles oficiais de carreira que deixou muita obra feita em terras de África. Nessa Companhia, passados tantos meses, após uma ligeira conversa com o sargento da secretaria, o duro mas justo “primeiro” Madail, vim a receber os valores, que a juntar a tantos outros, devem ter servido para o tal Tobias comprar o carrinho novo p’ ra mostrar lá na terra...
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Uma das casinhas-tipo, as tais "casinhas tipo-maison", das muitas que eles mandaram construir na Metrópole e até nas capitais das ex-Colónias.
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Nota do Relactor: Os nomes das pessoas visadas (corruptos e assassinos) são fictícios. Os outros, a quem pretendo prestar a devida homenagem pela diferença dos anteriores são reais.
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Nota do Relactor: Os nomes das pessoas visadas (corruptos e assassinos) são fictícios. Os outros, a quem pretendo prestar a devida homenagem pela diferença dos anteriores são reais.
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