As crianças sobredotadas sempre existiram. O meu amigo e confidente furriel de Operações Especiais: Burnay, desde a mais tenra idade que se salientou pela suas capacidades intelectuais. Na idade escolar, geralmente só abria os livros para efectuar consultas. Não necessariamente para estudar. Captava as matérias durante as aulas e fixava-as na sua memória prodigiosa ; manifestava um sentido crítico muito pertinente, equilibrado e construtivo em relação às mais complexas questões. Possuía uma intuição surpreendente. Tinha uma mente brilhante e uma inteligência para além dos parâmetros normais. Os parentes e amigos auguravam-lhe um futuro promissor como detective, ou outro trabalho relacionado com a investigação. Um parente encaminhou-o para a polícia política. O Burnay, por ocasião da sua incorporação militar, já era inspector por mérito próprio. Não quis pedir espera para completar os estudos, ávido que estava em se alistar numa tropa de elite. Escolheu, assim, as Operações Especiais, em Lamego, onde concluiu o curso com distinção. Quis fazer a comissão de serviço prestando serviço como combatente. Foi mobilizado para Angola e integrado numa Companhia de Artilharia. Conheci-o no Leste já com cerca de vinte meses de comissão, faltando-lhe, portanto, apenas quatro para o regresso à Metrópole.
O meu apelido (Silva Pais) aliado ao facto de pertencer a uma arma e especialidade conotada com os Serviços Secretos, deixavam sempre na dúvida. tanto os comandantes como o restante pessoal que conheciam o nome do director-geral da polícia política, relativamente ao meu grau de parentesco com aquele que foi, sem dúvida, o homem mais poderoso e temido do Estado Novo. Quando mo perguntavam, a minha resposta era invariavelmente a mesma : - Sou efectivamente familiar mas nunca mantive com ele um relacionamento amigável ! Esta resposta deixava-os sempre na dúvida, levando-os a agirem para comigo sempre com uma razoável prudência. E isso permitiu-me uma grande margem de segurança nas conversas de esclarecimento político junto dos outros militares.
O director-geral da Polícia Internacional e Defesa do Estado - Direcção-Geral de Segurança (PIDE-DGS) foi um homem a quem muito poucas pessoas conheceram a cara, a obra e as suas capacidades intelectuais. O major Fernando Eduardo da Silva Pais, imediatamente após a revolução do 25 de Abril foi levado, e aí mantido prisioneiro, para o RE-1 (Regimento de Engenharia da Pontinha). Durante esse período fazia serviço nessa Unidade um dos meus melhores amigos da adolescência, o saudoso Antero Jorge. O Antero sempre havia sido um ferrenho anti-fascista. Não recordo quantas vezes tivemos de fugir e de escapar às balas traiçoeiras da Pide quando distribuíamos panfletos à população ou aos estudantes. E as fugas precipitadas quando nos encontrávamos, clandestinamente, a conversar e a ouvir cantar o Zeca Afonso ?
Ocorre-me, por exemplo, a exibição de um filme demasiado arrojado para a época e em cartaz no Cinema Rox, em Alvalade, protagonizado por uma nova e linda actriz chamada Maria Cabral. Se a memória não me atraiçoa, julgo que com ela contracenavam o actor José Viana, entre outros. “O Cerco” era o título do filme, daqueles chamados de vanguarda, rodado quase todo na zona de Peniche, com grandes planos muito demorados, irritantemente monótonos. Retratava a actuação da Pide com muita subtileza, pois a censura era impiedosa mas, por vezes, incrivelmente estúpida.
O Antero Jorge nem sequer podia ouvir pronunciar o meu apelido, tamanha era a raiva que nutria pelo que representava o nome do “homem” e a sua sinistra organização. Contudo, quando teve o ensejo de o ver aprisionado e “ferido de morte” quis conhecê-lo. Com ele entabulou conversa e ficou impressionado com a sua personalidade. Era dotado duma rara inteligência, vasta e abrangente cultura e duma educação extremamente refinada. Tinha um conhecimento enciclopédico da História. Por tal facto não suportava os comunistas e já prenunciava a sua inevitável decadência. O Antero contou-me haver ficado fascinado com aquela personalidade. Era, afinal, uma pessoa comum, em nada deixando transparecer um espírito monstruoso, que quase toda a gente, sem nunca sequer o haver conhecido, lhe atribuía.
O furriel Burnay, à medida que me ia conhecendo, ia também deixando cair a capa na qual furtivamente se escondia. Confidenciou-me os seus temores, mostrou-me as caixas de Lorenin, Valium e outros tranquilizantes e anti-depressivos que há algum tempo vinha tomando. Porquê ? Simplesmente porque lhe haviam sido dados a conhecer os mecanismos da polícia sinistra para a qual, tão jovem, o tinham empurrado. Não queria voltar a fazer parte daquela engrenagem mas era tarde demais. Demitir-se era como que assinar ele próprio a sua certidão de óbito. Fugir ? Para onde ? A ele já haviam sido cometidas missões que lhe pesavam na consciência. E, assim, debatendo-se com os fantasmas que o atormentavam e simultaneamente contra um destino vazio - sem que mais ninguém se desse conta - a sua comissão militar lá se ia encaminhando velozmente para o fim.
Certo dia, numa pequena aldeia transmontana, no concelho de Armamar, apareceram três indivíduos trajando gabardinas negras, chapéus de abas e óculos escuros à procura do humilde e iletrado Severino, o ferrador. Foram encontrá-lo na sua loja incrustada nos calhaus, preparando-se para extrair, já anestesiado localmente com uma pouca de aguardente, um dente a um conterrâneo. O pobre homem ficou para ali sentado e aterrorizado enquanto o “dentista” foi levado aos empurrões até ao carro que havia ficado estacionado lá mais abaixo, na estrada romana. Durante cerca de quinze dias nunca mais ninguém teve notícias dele. - Aquilo foi obra da Pide ! - dizia o senhor professor muito baixinho e timidamente. Mas sabia-se lá porquê ?
Em Lisboa, nas instalações da Rua António Maria Cardoso, o ferrador foi mantido incomunicável durante dez dias.
Por fim, levado para uma sala, amarrado a uma cadeira de madeira, dificilmente pôde reconhecer aqueles que o interrogaram, tão intensa era a luz do projector que lhe estava apontado à cara. Passados menos de cinco minutos o projector foi desligado e um dos inquisidores perguntou de forma áspera e voz alta e irritada : - Afinal o que é que este gajo está aqui a fazer ? Quem é que o mandou ?
No processo de captura constava que “...o indivíduo em causa representava uma séria ameaça à segurança nacional e aos deveres patrióticos, pois muito raramente comparecia à missa dominical e, quando esporadicamente o fazia, nunca depositava esmola na cesta por ocasião do peditório, considerando-se esta atitude como subversiva e própria dum potencial comunista”. Assinava esta informação o pároco da aldeia. O homem foi mandado embora e, envergonhado, deslocou-se a pé para casa duns familiares na Amadora e só teve coragem de voltar à terra depois de passados cinco dias.
Imensas foram as histórias que o furriel Burnay me contou. Tanta barbaridade ! Tanta injustiça ! Tanto terror !
Os tentáculos da Pide estendiam-se até aos recantos das nossas próprias casas. Familiares e amigos que eram denunciados como subversivos - comunistas ! Vizinhos e colegas de trabalho ! Em toda a parte existiam informadores. Imediatamente a seguir à Revolução de Abril formaram-se filas de espera à porta da Comissão de Extinção da PIDE-DGS, com o objectivo de se conseguir um Certificado, no qual constava explicitamente que determinado fulano nunca havia sido colaborador da polícia política.
Esses certificados encontravam-se por todo o lado : afixados nas lojas, supermercados, consultórios de advogados, de médicos, etc. para que os eventuais suspeitos pudessem livremente e fora de qualquer desconfiança continuarem a exercer as suas actividades.
Deixei de ver o furriel Burnay em meados do ano de 1970. Jamais soube se ele terá conseguido alcançar Abril de 1974.
O meu apelido (Silva Pais) aliado ao facto de pertencer a uma arma e especialidade conotada com os Serviços Secretos, deixavam sempre na dúvida. tanto os comandantes como o restante pessoal que conheciam o nome do director-geral da polícia política, relativamente ao meu grau de parentesco com aquele que foi, sem dúvida, o homem mais poderoso e temido do Estado Novo. Quando mo perguntavam, a minha resposta era invariavelmente a mesma : - Sou efectivamente familiar mas nunca mantive com ele um relacionamento amigável ! Esta resposta deixava-os sempre na dúvida, levando-os a agirem para comigo sempre com uma razoável prudência. E isso permitiu-me uma grande margem de segurança nas conversas de esclarecimento político junto dos outros militares.
O director-geral da Polícia Internacional e Defesa do Estado - Direcção-Geral de Segurança (PIDE-DGS) foi um homem a quem muito poucas pessoas conheceram a cara, a obra e as suas capacidades intelectuais. O major Fernando Eduardo da Silva Pais, imediatamente após a revolução do 25 de Abril foi levado, e aí mantido prisioneiro, para o RE-1 (Regimento de Engenharia da Pontinha). Durante esse período fazia serviço nessa Unidade um dos meus melhores amigos da adolescência, o saudoso Antero Jorge. O Antero sempre havia sido um ferrenho anti-fascista. Não recordo quantas vezes tivemos de fugir e de escapar às balas traiçoeiras da Pide quando distribuíamos panfletos à população ou aos estudantes. E as fugas precipitadas quando nos encontrávamos, clandestinamente, a conversar e a ouvir cantar o Zeca Afonso ?
Ocorre-me, por exemplo, a exibição de um filme demasiado arrojado para a época e em cartaz no Cinema Rox, em Alvalade, protagonizado por uma nova e linda actriz chamada Maria Cabral. Se a memória não me atraiçoa, julgo que com ela contracenavam o actor José Viana, entre outros. “O Cerco” era o título do filme, daqueles chamados de vanguarda, rodado quase todo na zona de Peniche, com grandes planos muito demorados, irritantemente monótonos. Retratava a actuação da Pide com muita subtileza, pois a censura era impiedosa mas, por vezes, incrivelmente estúpida.
O Antero Jorge nem sequer podia ouvir pronunciar o meu apelido, tamanha era a raiva que nutria pelo que representava o nome do “homem” e a sua sinistra organização. Contudo, quando teve o ensejo de o ver aprisionado e “ferido de morte” quis conhecê-lo. Com ele entabulou conversa e ficou impressionado com a sua personalidade. Era dotado duma rara inteligência, vasta e abrangente cultura e duma educação extremamente refinada. Tinha um conhecimento enciclopédico da História. Por tal facto não suportava os comunistas e já prenunciava a sua inevitável decadência. O Antero contou-me haver ficado fascinado com aquela personalidade. Era, afinal, uma pessoa comum, em nada deixando transparecer um espírito monstruoso, que quase toda a gente, sem nunca sequer o haver conhecido, lhe atribuía.
O furriel Burnay, à medida que me ia conhecendo, ia também deixando cair a capa na qual furtivamente se escondia. Confidenciou-me os seus temores, mostrou-me as caixas de Lorenin, Valium e outros tranquilizantes e anti-depressivos que há algum tempo vinha tomando. Porquê ? Simplesmente porque lhe haviam sido dados a conhecer os mecanismos da polícia sinistra para a qual, tão jovem, o tinham empurrado. Não queria voltar a fazer parte daquela engrenagem mas era tarde demais. Demitir-se era como que assinar ele próprio a sua certidão de óbito. Fugir ? Para onde ? A ele já haviam sido cometidas missões que lhe pesavam na consciência. E, assim, debatendo-se com os fantasmas que o atormentavam e simultaneamente contra um destino vazio - sem que mais ninguém se desse conta - a sua comissão militar lá se ia encaminhando velozmente para o fim.
Certo dia, numa pequena aldeia transmontana, no concelho de Armamar, apareceram três indivíduos trajando gabardinas negras, chapéus de abas e óculos escuros à procura do humilde e iletrado Severino, o ferrador. Foram encontrá-lo na sua loja incrustada nos calhaus, preparando-se para extrair, já anestesiado localmente com uma pouca de aguardente, um dente a um conterrâneo. O pobre homem ficou para ali sentado e aterrorizado enquanto o “dentista” foi levado aos empurrões até ao carro que havia ficado estacionado lá mais abaixo, na estrada romana. Durante cerca de quinze dias nunca mais ninguém teve notícias dele. - Aquilo foi obra da Pide ! - dizia o senhor professor muito baixinho e timidamente. Mas sabia-se lá porquê ?
Em Lisboa, nas instalações da Rua António Maria Cardoso, o ferrador foi mantido incomunicável durante dez dias.
Por fim, levado para uma sala, amarrado a uma cadeira de madeira, dificilmente pôde reconhecer aqueles que o interrogaram, tão intensa era a luz do projector que lhe estava apontado à cara. Passados menos de cinco minutos o projector foi desligado e um dos inquisidores perguntou de forma áspera e voz alta e irritada : - Afinal o que é que este gajo está aqui a fazer ? Quem é que o mandou ?
No processo de captura constava que “...o indivíduo em causa representava uma séria ameaça à segurança nacional e aos deveres patrióticos, pois muito raramente comparecia à missa dominical e, quando esporadicamente o fazia, nunca depositava esmola na cesta por ocasião do peditório, considerando-se esta atitude como subversiva e própria dum potencial comunista”. Assinava esta informação o pároco da aldeia. O homem foi mandado embora e, envergonhado, deslocou-se a pé para casa duns familiares na Amadora e só teve coragem de voltar à terra depois de passados cinco dias.
Imensas foram as histórias que o furriel Burnay me contou. Tanta barbaridade ! Tanta injustiça ! Tanto terror !
Os tentáculos da Pide estendiam-se até aos recantos das nossas próprias casas. Familiares e amigos que eram denunciados como subversivos - comunistas ! Vizinhos e colegas de trabalho ! Em toda a parte existiam informadores. Imediatamente a seguir à Revolução de Abril formaram-se filas de espera à porta da Comissão de Extinção da PIDE-DGS, com o objectivo de se conseguir um Certificado, no qual constava explicitamente que determinado fulano nunca havia sido colaborador da polícia política.
Esses certificados encontravam-se por todo o lado : afixados nas lojas, supermercados, consultórios de advogados, de médicos, etc. para que os eventuais suspeitos pudessem livremente e fora de qualquer desconfiança continuarem a exercer as suas actividades.
Deixei de ver o furriel Burnay em meados do ano de 1970. Jamais soube se ele terá conseguido alcançar Abril de 1974.
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