Imagens e texto extraídos do blogue do amigo Mário Mendes (ex-combatente), blogue: C.CAÇ.3413
.
.
O TEMÍVEL MORRO DA PEDRA VERDE
.
Situado geograficamente entre Quibaxe e Ucua, na província de Cuanza Norte, era atravessado por uma estrada asfaltada, a qual nos parecia sempre tão pequenina e aterradoramente apertada, ladeada e comprimida que estava por aqueles morros tão altos e com um historial de guerra tão sinistro. A vegetação tropical dum verde sempre húmido quanto luxuriante ali crescia envolta num silêncio perturbador e profundo. Todos nós já havíamos alguma vez ouvido contar, como se de uma lenda se tratasse, que toda aquela imponência construída pela natureza a uma altura desmesurada, havia sido traiçoeiramente adubada com sangue e restos de corpos jamais encontrados. Outrora um local ideal de massacres que dizimaram pelotões inteiros, sobretudo nos primeiros anos de guerrilha, era um local propício à prática do fogo cruzado. A progressão no terreno era praticamente impossível, dada a sua altura enorme e uma inclinação quase vertical. Foram sobretudo as tropas paraquedistas quem dali enviou para a Metrópole mais caixas, daquelas que recordo ainda ouvir – quem não se recorda ? – na balada de intervenção de Adriano Correia de Oliveira : “...desta vez o soldadinho / vem numa caixa de pinho..."
Passei por lá duas vezes. Da última, seguia em coluna civil escoltada por viaturas militares, pois a Companhia havia sido transferida de Ambriz para o Quiage, na região dos Dembos. Os relógios marcavam mais ou menos vinte e uma horas. O sol já se havia recolhido e a escuridão tornava a passagem por aquele local ainda mais arripiante. Há muito que as tropas portuguesas controlavam a região e não havia notícia de qualquer ataque, contudo, as instruções do comando apontavam para que a passagem se efectuasse à maior velocidade possível, os olhos bem abertos e preparados para qualquer eventualidade. Normalmente, em deslocações deste género viajávamos juntamente com as bagagens, na caixa de carga de camiões civis e aproveitávamos para dormir, cobrindo-nos com o oleado. A viatura em que eu, acompanhado de meia dúzia de camaradas, me transportava, tinha uns painéis laterais e traseiros do tipo das usadas no transporte de gado. Alguns momentos antes de chegarmos à Pedra Verde levantámo-nos, colocando as cartucheiras à cintura e, enquanto a mão esquerda se agarrava com firmeza a uma das traves do taipal, a direita segurava a G-3, já com a patilha de selecção de tiro na posição de rajada. E, a partir daí, seria como passar pelo corredor escuro da Casa dos Fantasmas da Feira Popular...
As viaturas que seguiam à nossa frente aceleraram, acabando por ficarem fora do meu campo visual ; apenas se viam as luzes dos faróis lá mais adiante. De repente, o camião em que eu seguia travou bruscamente, os faróis apagaram-se, o mesmo acontecendo às duas viaturas que nos seguiam. No meio daquela sinistra escuridão e do silêncio sepulcral ouvi uma discussão de vozes atabalhoadas que não reconheci de imediato e a voz de um negro que “arranhava” o português. O instinto fez-me galgar o taipal, saltei para a berma, atitude tomada pelos restantes camaradas, e caí de cú, adoptando logo de seguida a posição típica de combate : deitado de barriga para baixo, o corpo esticado e a metralhadora apontada para a frente, consciente, contudo, de que de nada serviria o seu uso. Calaram-se as vozes. A mim, assim como a todos os outros que sabia estarem algures ali estendidos, restava esperar talvez o eventual rebentamento duma granada. Não deu tempo sequer para rezar...Lembro-me de, involuntariamente, haver começado a tremer e de ter feito um enorme esforço para manter a calma e, sobretudo, a Fé.
Entretanto, no meio daquele silêncio de tempo indefinido, a vista começou a habituar-se à escuridão e comecei a enxergar os camaradas que se mantinham imóveis tanto à minha direita como à esquerda. Comecei a ouvir vozes dispersas à distância, não conseguindo, porém, distinguir o que diziam. Manteve-se a espera convertida em resignação. Fazer o quê ? Aguardar ! Passados os primeiros momentos de incerteza e desprendimento, misturados, obviamente, com o medo (não era vergonha tê-lo, é um sentimento humano e, na maioria dos casos até se tornava nosso aliado, dando-nos forças que até então desconhecíamos), então sim, consegui, ainda com algum trepidar dos maxilares, rezar. Não muito, pois nesse momento, mesmo por cima dos nossos corpos, explode no ar com enorme estrondo e iluminando a área, uma granada. Logo seguida de outra, e mais outra. Ao longe ouvi tiros de rajada, os quais consegui imediatamente identificar como partindo de uma metralhadora G-3. Reconheci então a voz do furriel de Operações Especiais, o Fonseca, que havia chegado com mais alguém. – Malta, toca a unir e vamos embora, está tudo bem ! Não há crise ! Esta guerra não é connosco !
Só quando chegámos ao Ucua, a alguns quilómetros mais à frente e onde estava instalado um destacamento da PIDE-DGS, tivemos conhecimento do que se havia passado. Na estrada encontrava-se um indivíduo de raça negra, completamente despido, ensanguentado, sem uma orelha e com dois dedos da mão cortados, pedindo auxílio à coluna que ali passava naquele instante. Disse ser trabalhador numa fazenda ali perto e terem sido assaltados por um grupo de "terroristas". Os motoristas dos camiões que nos precediam haviam-se recusado a parar. O do nosso camião, um negro natural e residente em Luanda, teve um comportamento bem diferente. Parou, e, contrariando a ordem do furriel Fonseca que seguia na cabina a seu lado, disse-lhe com indignação e firmeza : - Mas afinal ninguém parou porquê ? Por o homem ser negro ? E se fosse branco, não paravam ? Quando chegar a Luanda vou direitinho ao Quartel-General e vou dar conhecimento desta vossa atitude !
Depois, sem nos prevenir, o furriel de Operações Especiais partiu juntamente com um sargento, que também viajava na cabina, e o motorista negro na direcção da roça de café que supostamente estava a ser atacada, a qual distava ainda mais de um quilómetro do local onde nos encontrávamos. Aquela guerra realmente não era nossa, por isso decidiram, após progredirem uma dezena de metros, tentar intimidar os presumíveis assaltantes (não necessariamente terroristas). Lançaram, com a G-3, algumas granadas para o ar e fizeram alguns disparos de rajada. Aqueles rebentamentos e os enormes clarões por eles provocados interromperam abrupta e momentaneamente a escuridão e o silêncio, fazendo-nos acreditar que estávamos a ser alvo de um ataque.
Já em cima do camião, por via das dúvidas, ainda percorremos alguns quilómetros com a atenção redobrada, traumatizados que ficámos com aquele insólito acontecimento. Chegados à localidade de Ucua, o negro ferido foi entregue aos cuidados da Polícia Política e lá prosseguimos viagem. Fazia frio, o cacimbo havia já começado a formar-se, tornando-se cada vez mais denso, e voltei a desapertar o cinturão, atirando-o juntamente com as cartucheiras para o lado e colocando, lembrando aos camaradas que fizessem o mesmo, a patilha de selecção de tiro na posição de segurança. Encostei a cabeça em cima duma grade de refrigerantes, tapando-me com o oleado mas, durante o resto dessa viagem, já não consegui adormecer.
Situado geograficamente entre Quibaxe e Ucua, na província de Cuanza Norte, era atravessado por uma estrada asfaltada, a qual nos parecia sempre tão pequenina e aterradoramente apertada, ladeada e comprimida que estava por aqueles morros tão altos e com um historial de guerra tão sinistro. A vegetação tropical dum verde sempre húmido quanto luxuriante ali crescia envolta num silêncio perturbador e profundo. Todos nós já havíamos alguma vez ouvido contar, como se de uma lenda se tratasse, que toda aquela imponência construída pela natureza a uma altura desmesurada, havia sido traiçoeiramente adubada com sangue e restos de corpos jamais encontrados. Outrora um local ideal de massacres que dizimaram pelotões inteiros, sobretudo nos primeiros anos de guerrilha, era um local propício à prática do fogo cruzado. A progressão no terreno era praticamente impossível, dada a sua altura enorme e uma inclinação quase vertical. Foram sobretudo as tropas paraquedistas quem dali enviou para a Metrópole mais caixas, daquelas que recordo ainda ouvir – quem não se recorda ? – na balada de intervenção de Adriano Correia de Oliveira : “...desta vez o soldadinho / vem numa caixa de pinho..."
Passei por lá duas vezes. Da última, seguia em coluna civil escoltada por viaturas militares, pois a Companhia havia sido transferida de Ambriz para o Quiage, na região dos Dembos. Os relógios marcavam mais ou menos vinte e uma horas. O sol já se havia recolhido e a escuridão tornava a passagem por aquele local ainda mais arripiante. Há muito que as tropas portuguesas controlavam a região e não havia notícia de qualquer ataque, contudo, as instruções do comando apontavam para que a passagem se efectuasse à maior velocidade possível, os olhos bem abertos e preparados para qualquer eventualidade. Normalmente, em deslocações deste género viajávamos juntamente com as bagagens, na caixa de carga de camiões civis e aproveitávamos para dormir, cobrindo-nos com o oleado. A viatura em que eu, acompanhado de meia dúzia de camaradas, me transportava, tinha uns painéis laterais e traseiros do tipo das usadas no transporte de gado. Alguns momentos antes de chegarmos à Pedra Verde levantámo-nos, colocando as cartucheiras à cintura e, enquanto a mão esquerda se agarrava com firmeza a uma das traves do taipal, a direita segurava a G-3, já com a patilha de selecção de tiro na posição de rajada. E, a partir daí, seria como passar pelo corredor escuro da Casa dos Fantasmas da Feira Popular...
As viaturas que seguiam à nossa frente aceleraram, acabando por ficarem fora do meu campo visual ; apenas se viam as luzes dos faróis lá mais adiante. De repente, o camião em que eu seguia travou bruscamente, os faróis apagaram-se, o mesmo acontecendo às duas viaturas que nos seguiam. No meio daquela sinistra escuridão e do silêncio sepulcral ouvi uma discussão de vozes atabalhoadas que não reconheci de imediato e a voz de um negro que “arranhava” o português. O instinto fez-me galgar o taipal, saltei para a berma, atitude tomada pelos restantes camaradas, e caí de cú, adoptando logo de seguida a posição típica de combate : deitado de barriga para baixo, o corpo esticado e a metralhadora apontada para a frente, consciente, contudo, de que de nada serviria o seu uso. Calaram-se as vozes. A mim, assim como a todos os outros que sabia estarem algures ali estendidos, restava esperar talvez o eventual rebentamento duma granada. Não deu tempo sequer para rezar...Lembro-me de, involuntariamente, haver começado a tremer e de ter feito um enorme esforço para manter a calma e, sobretudo, a Fé.
Entretanto, no meio daquele silêncio de tempo indefinido, a vista começou a habituar-se à escuridão e comecei a enxergar os camaradas que se mantinham imóveis tanto à minha direita como à esquerda. Comecei a ouvir vozes dispersas à distância, não conseguindo, porém, distinguir o que diziam. Manteve-se a espera convertida em resignação. Fazer o quê ? Aguardar ! Passados os primeiros momentos de incerteza e desprendimento, misturados, obviamente, com o medo (não era vergonha tê-lo, é um sentimento humano e, na maioria dos casos até se tornava nosso aliado, dando-nos forças que até então desconhecíamos), então sim, consegui, ainda com algum trepidar dos maxilares, rezar. Não muito, pois nesse momento, mesmo por cima dos nossos corpos, explode no ar com enorme estrondo e iluminando a área, uma granada. Logo seguida de outra, e mais outra. Ao longe ouvi tiros de rajada, os quais consegui imediatamente identificar como partindo de uma metralhadora G-3. Reconheci então a voz do furriel de Operações Especiais, o Fonseca, que havia chegado com mais alguém. – Malta, toca a unir e vamos embora, está tudo bem ! Não há crise ! Esta guerra não é connosco !
Só quando chegámos ao Ucua, a alguns quilómetros mais à frente e onde estava instalado um destacamento da PIDE-DGS, tivemos conhecimento do que se havia passado. Na estrada encontrava-se um indivíduo de raça negra, completamente despido, ensanguentado, sem uma orelha e com dois dedos da mão cortados, pedindo auxílio à coluna que ali passava naquele instante. Disse ser trabalhador numa fazenda ali perto e terem sido assaltados por um grupo de "terroristas". Os motoristas dos camiões que nos precediam haviam-se recusado a parar. O do nosso camião, um negro natural e residente em Luanda, teve um comportamento bem diferente. Parou, e, contrariando a ordem do furriel Fonseca que seguia na cabina a seu lado, disse-lhe com indignação e firmeza : - Mas afinal ninguém parou porquê ? Por o homem ser negro ? E se fosse branco, não paravam ? Quando chegar a Luanda vou direitinho ao Quartel-General e vou dar conhecimento desta vossa atitude !
Depois, sem nos prevenir, o furriel de Operações Especiais partiu juntamente com um sargento, que também viajava na cabina, e o motorista negro na direcção da roça de café que supostamente estava a ser atacada, a qual distava ainda mais de um quilómetro do local onde nos encontrávamos. Aquela guerra realmente não era nossa, por isso decidiram, após progredirem uma dezena de metros, tentar intimidar os presumíveis assaltantes (não necessariamente terroristas). Lançaram, com a G-3, algumas granadas para o ar e fizeram alguns disparos de rajada. Aqueles rebentamentos e os enormes clarões por eles provocados interromperam abrupta e momentaneamente a escuridão e o silêncio, fazendo-nos acreditar que estávamos a ser alvo de um ataque.
Já em cima do camião, por via das dúvidas, ainda percorremos alguns quilómetros com a atenção redobrada, traumatizados que ficámos com aquele insólito acontecimento. Chegados à localidade de Ucua, o negro ferido foi entregue aos cuidados da Polícia Política e lá prosseguimos viagem. Fazia frio, o cacimbo havia já começado a formar-se, tornando-se cada vez mais denso, e voltei a desapertar o cinturão, atirando-o juntamente com as cartucheiras para o lado e colocando, lembrando aos camaradas que fizessem o mesmo, a patilha de selecção de tiro na posição de segurança. Encostei a cabeça em cima duma grade de refrigerantes, tapando-me com o oleado mas, durante o resto dessa viagem, já não consegui adormecer.
.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário