Pertencendo a uma Unidade de Recompletamento, e em virtude de a Companhia de Artilharia na qual havia prestado serviço ter regressado à Metrópole, fui colocado numa Companhia de Engenharia que se encontrava instalada no norte, na simpática embora desabitada vila de Santa Cruz.
Já tinha acabado de assistir ao espectacular pôr-do-sol. Era hora de jogar às cartas, ao monopólio, ler ou simplesmente ouvir música. É verdade ! Ouvir música ! Através dum rádio pequeno e transistorizado, a cuja antena se enrolava um arame extenso e, em onda-curta, com os inevitáveis mais ou menos acentuados ruídos de fundo, captava os muito bons programas nocturnos e realizados por excelentes profissionais, quer os mais consagrados e oficiais difundindo a partir de Luanda, quer os esforçados regionais, ou mesmo ainda os estrangeiros, a partir do Congo ou até da África do Sul. De Luanda recordo com nostalgia o “Café da Noite”, na voz de Sebastião Coelho ; a Rádio Ecclesia ; os programas que apenas “passavam” música africana ; os frenéticos sul-africanos emitindo a partir de Joanesburgo : “You are listening to the radio RSA, the voice of South Africa...”
O comandante da Companhia de Artilharia responsável por aquela vila, um capitão psicologicamente desequilibrado era assessorado por um segundo-comandante, um alferes miliciano, figura repugnante a sugerir um daqueles oficiais SS das tropas nazis.
Filho dum brigadeiro, segundo se constava, valia-se desse facto para impôr a sua desmedida autoridade aos seus subordinados, tratando-os mesmo abaixo de cão. Usava um chicote na mão direita e passava todo o tempo batendo com ele na própria perna. Tinha, decerto, plena consciência de que o seu aspecto físico era gémeo do seu carácter asqueroso. Era, realmente, uma personalidade aberrante, descontente consigo próprio ou com a Natureza que o moldou com tantos defeitos de fabrico. O alferes Mota Freitas jamais me saíu da memória superficial, pois somente nos livros e filmes de ficção conheci uma figura tão desumana.
A Engenharia militar tinha vindo a realizar nesta zona melhoramentos importantes e os Movimentos de Libertação tinham perfeita consciência de que estávamos a trabalhar para eles. Além disso, desde que não os perseguissem, também não faziam mal a ninguém. Mas existiam militares que não gostavam daquele sossego, estavam sempre na expectativa de “desenferrujar o armamento”. Então, com um comandante com um perfil desiquilibradamente belicista, o apetite aguçava-se-lhes e estavam sempre desejosos de entrar em acção. Outros, então, trabalhavam, cumpriam escrupulosamente com o seu dever, mas aproveitavam os seus momentos de lazer para fazer canteiros com flores ou passear de carro de mão, como ilustram as fotografias :
Já tinha acabado de assistir ao espectacular pôr-do-sol. Era hora de jogar às cartas, ao monopólio, ler ou simplesmente ouvir música. É verdade ! Ouvir música ! Através dum rádio pequeno e transistorizado, a cuja antena se enrolava um arame extenso e, em onda-curta, com os inevitáveis mais ou menos acentuados ruídos de fundo, captava os muito bons programas nocturnos e realizados por excelentes profissionais, quer os mais consagrados e oficiais difundindo a partir de Luanda, quer os esforçados regionais, ou mesmo ainda os estrangeiros, a partir do Congo ou até da África do Sul. De Luanda recordo com nostalgia o “Café da Noite”, na voz de Sebastião Coelho ; a Rádio Ecclesia ; os programas que apenas “passavam” música africana ; os frenéticos sul-africanos emitindo a partir de Joanesburgo : “You are listening to the radio RSA, the voice of South Africa...”
O comandante da Companhia de Artilharia responsável por aquela vila, um capitão psicologicamente desequilibrado era assessorado por um segundo-comandante, um alferes miliciano, figura repugnante a sugerir um daqueles oficiais SS das tropas nazis.
Filho dum brigadeiro, segundo se constava, valia-se desse facto para impôr a sua desmedida autoridade aos seus subordinados, tratando-os mesmo abaixo de cão. Usava um chicote na mão direita e passava todo o tempo batendo com ele na própria perna. Tinha, decerto, plena consciência de que o seu aspecto físico era gémeo do seu carácter asqueroso. Era, realmente, uma personalidade aberrante, descontente consigo próprio ou com a Natureza que o moldou com tantos defeitos de fabrico. O alferes Mota Freitas jamais me saíu da memória superficial, pois somente nos livros e filmes de ficção conheci uma figura tão desumana.
A Engenharia militar tinha vindo a realizar nesta zona melhoramentos importantes e os Movimentos de Libertação tinham perfeita consciência de que estávamos a trabalhar para eles. Além disso, desde que não os perseguissem, também não faziam mal a ninguém. Mas existiam militares que não gostavam daquele sossego, estavam sempre na expectativa de “desenferrujar o armamento”. Então, com um comandante com um perfil desiquilibradamente belicista, o apetite aguçava-se-lhes e estavam sempre desejosos de entrar em acção. Outros, então, trabalhavam, cumpriam escrupulosamente com o seu dever, mas aproveitavam os seus momentos de lazer para fazer canteiros com flores ou passear de carro de mão, como ilustram as fotografias :
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A vila de Santa Cruz, à semelhança de tantas outras, havia sido projectada numa extensão de mais ou menos quinhentos metros, com vivendas de rés-do-chão ladeando uma estrada asfaltada. As casas encontravam-se desabitadas e visivelmente degradadas no seu exterior. E complementavam-na, como em quase todas as cidades e vilas angolanas, se bem que estrategicamente afastada, uma sanzala, donde provinha a mão-de-obra marcada com os centenários ferros da escravatura.
Naquela vila encontrava-se um destacamento composto por uma Companhia de Artilharia formada na sua generalidade por soldados africanos, o Comando duma Companhia de Engenharia (na qual eu me integrava) e um Pelotão de Morteiros, oriundos da ilha da Madeira.
Os soldados negros denotavam uma grande preocupação em competir, sem dúvida para melhor, com os chamados “bimbos” da Metrópole. Tornava-se, inclusivamente, agradável, ouvi-los a discutir futebol. Eram muito asseados, esforçavam-se na escolha das palavras durante as conversas que mantinham entre si e, sobretudo, connosco. Nunca diziam que a mulher havia tido um filho ou parido, mas sim “a minha esposa concebeu...” Não me importaria de ter passado a comissão integrado numa Companhia angolana !
Certa noite, um soldado da Companhia de Morteiros que procedia à vigília num dos extremos da vila, avistou uma luz movimentando-se ao longe, na mata. Desatou aos tiros. Alarmou todo o pessoal militar. Muitos deles andavam fartos da monotonia em que há muito, e felizmente, se vivia. E o desejo latente de desenferrujar o equipamento bélico levou a que todo o aquartelamento acabasse aos tiros e à morteirada, tornando a pacata vila de Santa Cruz num autêntico palco de guerra. Apanhado desprevenido, atirei-me para o chão, as balas assobiando sobre a minha cabeça e assisti àquilo que parecia ser um autêntico fogo de artifício.
Deixei de ver as estrelas, habitualmente cintilando naquele céu negro e coberto de pontos luminosos formando constelações. O firmamento havia-se transformado num colorido intenso de vermelho e amarelo. Os rebentamentos consecutivos, o fumo e o forte odor da pólvora confundiam-me os sentidos. Rastejei até ao Posto de Rádio, dirigindo-me ao Centro de Cripto. Aí chegado, peguei no cinturão que suportava as cartucheiras, apertando-o à cintura, coloquei a patilha da G-3 na posição de tiro de rajada e voltei a sair, rastejando sempre. O desenfreado tiroteio parecia não ter fim. Não sabia exactamente o que se estava a passar, contudo, admiti que o inimigo estava determinado a entrar na vila ou talvez até já tivesse entrado. Então, desapertei com dificuldade todas as cartucheiras para a eventualidade de ter de substituir os carregadores vazios por outros carregados. A insistência daquele fogo – durou aproximadamente uma hora – levou-me mesmo a pensar na medida mais drástica a que eu me havia obrigado em tal situação. Rastejei novamente até ao interior do Centro de Cripto e abri o recipiente que continha cinco litros de petróleo. Ali fiquei à espera, pronto a derramá-lo, incendiando assim toda a papelada contida no seu interior. De repente, reconheçI a voz espavorida do doido Comandante da Companhia. Pediu desesperadamente ao radiotelegrafista que contactasse o Batalhão dizendo que estávamos a ser vítimas dum ataque surpresa e que deveriam enviar auxílio aéreo.
Ideia inconsequente e estúpida, pois era sabido que durante a noite o apoio aéreo era praticamente impossível.
Acto contínuo, o tiroteio começou a abrandar, ouvindo-se apenas alguns tiros dispersos. Até que se fez silêncio definitivamente. Chegou alguém ao Posto de Rádio dizendo ter tudo sido fruto dum mal-entendido.
No dia seguinte eram visíveis as marcas deixadas nas paredes das casas esburacadas. Um capitão doido varrido, coadjuvado por um segundo comandante e alferes asqueroso, teriam inevitavelmente de incutir nos seus subordinados aquela acção tão irresponsável. A eles foi-lhes movido o respectivo processo disciplinar. A nós foi-nos gravado para sempre na memória o horror dum episódio de guerra que, felizmente, não nos feriu materialmente.
Na noite do segundo Natal (1971) as lágrmas correram incontroladamente, enquanto me esforçava para deglutir a insípida refeição, mas depois acabei, tal como tantos outros camaradas, por brincar. Tanto eu como os restantes companheiros das Transmissões, animámo-nos uns aos outros e até fingimos, um por um, através do rádio, falar com o Pai Natal.
Naquela vila encontrava-se um destacamento composto por uma Companhia de Artilharia formada na sua generalidade por soldados africanos, o Comando duma Companhia de Engenharia (na qual eu me integrava) e um Pelotão de Morteiros, oriundos da ilha da Madeira.
Os soldados negros denotavam uma grande preocupação em competir, sem dúvida para melhor, com os chamados “bimbos” da Metrópole. Tornava-se, inclusivamente, agradável, ouvi-los a discutir futebol. Eram muito asseados, esforçavam-se na escolha das palavras durante as conversas que mantinham entre si e, sobretudo, connosco. Nunca diziam que a mulher havia tido um filho ou parido, mas sim “a minha esposa concebeu...” Não me importaria de ter passado a comissão integrado numa Companhia angolana !
Certa noite, um soldado da Companhia de Morteiros que procedia à vigília num dos extremos da vila, avistou uma luz movimentando-se ao longe, na mata. Desatou aos tiros. Alarmou todo o pessoal militar. Muitos deles andavam fartos da monotonia em que há muito, e felizmente, se vivia. E o desejo latente de desenferrujar o equipamento bélico levou a que todo o aquartelamento acabasse aos tiros e à morteirada, tornando a pacata vila de Santa Cruz num autêntico palco de guerra. Apanhado desprevenido, atirei-me para o chão, as balas assobiando sobre a minha cabeça e assisti àquilo que parecia ser um autêntico fogo de artifício.
Deixei de ver as estrelas, habitualmente cintilando naquele céu negro e coberto de pontos luminosos formando constelações. O firmamento havia-se transformado num colorido intenso de vermelho e amarelo. Os rebentamentos consecutivos, o fumo e o forte odor da pólvora confundiam-me os sentidos. Rastejei até ao Posto de Rádio, dirigindo-me ao Centro de Cripto. Aí chegado, peguei no cinturão que suportava as cartucheiras, apertando-o à cintura, coloquei a patilha da G-3 na posição de tiro de rajada e voltei a sair, rastejando sempre. O desenfreado tiroteio parecia não ter fim. Não sabia exactamente o que se estava a passar, contudo, admiti que o inimigo estava determinado a entrar na vila ou talvez até já tivesse entrado. Então, desapertei com dificuldade todas as cartucheiras para a eventualidade de ter de substituir os carregadores vazios por outros carregados. A insistência daquele fogo – durou aproximadamente uma hora – levou-me mesmo a pensar na medida mais drástica a que eu me havia obrigado em tal situação. Rastejei novamente até ao interior do Centro de Cripto e abri o recipiente que continha cinco litros de petróleo. Ali fiquei à espera, pronto a derramá-lo, incendiando assim toda a papelada contida no seu interior. De repente, reconheçI a voz espavorida do doido Comandante da Companhia. Pediu desesperadamente ao radiotelegrafista que contactasse o Batalhão dizendo que estávamos a ser vítimas dum ataque surpresa e que deveriam enviar auxílio aéreo.
Ideia inconsequente e estúpida, pois era sabido que durante a noite o apoio aéreo era praticamente impossível.
Acto contínuo, o tiroteio começou a abrandar, ouvindo-se apenas alguns tiros dispersos. Até que se fez silêncio definitivamente. Chegou alguém ao Posto de Rádio dizendo ter tudo sido fruto dum mal-entendido.
No dia seguinte eram visíveis as marcas deixadas nas paredes das casas esburacadas. Um capitão doido varrido, coadjuvado por um segundo comandante e alferes asqueroso, teriam inevitavelmente de incutir nos seus subordinados aquela acção tão irresponsável. A eles foi-lhes movido o respectivo processo disciplinar. A nós foi-nos gravado para sempre na memória o horror dum episódio de guerra que, felizmente, não nos feriu materialmente.
Na noite do segundo Natal (1971) as lágrmas correram incontroladamente, enquanto me esforçava para deglutir a insípida refeição, mas depois acabei, tal como tantos outros camaradas, por brincar. Tanto eu como os restantes companheiros das Transmissões, animámo-nos uns aos outros e até fingimos, um por um, através do rádio, falar com o Pai Natal.
4 comentários:
Penso que esta Santa Cruz era amesma onde eu estive destacado em 68, estive lá 7 meses, adido à CART que estava na Quicua. Santa Cruz era um destacamento da Quicua e era nessa altura habitada e sede de Administração da qual dependia o posto de Macocola.
Sera a mesma.
Penso que a Companhia de Engenharia a que se refere era a que estava envolvida na melhoria/abertura de uma picada desde Santa Cruz até à picada que ligava Quimbele a Quicúa. A picada em construção passava pelo Morro do Recuo, onde se travaram violentos combates no final de 1970 e início de 1971.
A protecção a essa Companhia era dada pela CART 2731 (Companhia de Madeirenses), da qual eu fazia parte. Estávamos instalados em tendas na Aldeia Capitão, muito próxima do Morro do Recuo, a cerca de 20 quilómetros de Santa Cruz.
O pseudo-ataque a que se refere terá ocorrido em Outubro de 1971, em data que já não consigo recordar. Eu estava, com cerca de 10 camaradas da minha Companhia, a menos de 1 quilómetro de Santa Cruz a fazer protecção à ponte do rio Gibango (penso que é assim que se chama o rio), próxima da Fazenda Lopes. Para nós foi uma noite muito difícil
Quando rebentou o tiroteio pensámos que seria um ataque a Santa Cruz e que em seguida seríamos nós a vítimas.
Mas com o desenrolar dos acontecimentos começámos a temer mais as morteiradas da nossa tropa, que estavam a cair muito perto do nosso acampamento, do que um possível ataque do inimigo. Felizmente tudo não passou de um grande susto.
Aliás, em 2008, fiz referência a este pseudo-ataque no site da CART 2731
http://cart2731.no.sapo.pt/ "Memórias soltas" "Ataque a Santa Cruz?"
Estive a ler os relatos da malta que esteve em Santa Cruz Macocola, que me fizeram lembrar alguns dos meses aí passados.
Pertenci ao BC 12 (da provincia)e a minha companhia dava apoio ao batalhão " CCS" instalado em Samza Pombo e por isso eramos destacados atraves deste batalhão. Estive com o pelotão em Macocola,Cabaca (protecção à eengenharia) em 1967/68 e nessa altura nada aconteceu de anormal.
Havia um bom relacionamento com os habitantes (lembro o fazendeiro PEGADO e seus familiares) com quem se fazia amizade, tinhamos o comerciante das gasolinas e poucos mais....éra de facto uma terra com poucos habitantes e a nossa missão era de acção psicológica.
Boa tarde, sou filha do Julio Dinis Lopes de Macocola. Meu pai era comerciante em Macocola. No dia 6 de setembro 1971 perdi os meus pais numa emboscada na picada Macocola-Quimbele. Os meus pais forão sepultados em Sanza Pombo. Procuro todos os ex militares que dispensarão as urnias e assisterão ão funeral. Procuro todos os ex-militares que que conheçerão o meu pai. Ele abastecia em gazolina e comidas varias companhias da região Santa Cruz, Macocola, Massau, Macolo e Quicua... Em 1966-67 trabalhava par o senhor José Fernando do Nascimento que tinha uma casa comercial em Luanda. Muito obrigado pelo a vossa ajuda. Ana Lopes Maslo
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